Quando as cotas se tornam uma questão moral

Novamente surge a manchete do médico “branco” que passou na primeira fase do concurso para o Itamaraty pela política de cotas para negros. De uma forma muito ingênua surgem dois pensamentos: O primeiro se relaciona com a falência do sistema de cotas que permite que isso aconteça, o segundo afirma a miscigenação do povo brasileiro e tenta legitimar a política de cotas, mas todos poderiam se inscrever como cotistas.

Sendo assim, é necessário trazer dois pontos: Seria possível a genética afirmar quem é ou não merecedor de cotas raciais? Se a autodeterminação é um critério bastante aberto não seria necessário rever esse critério para que isso não volte a ocorrer?

Sobre o primeiro questionamento trago o artigo de Sérgio Pena e Maria Cátira Bortolini que, a partir de um instrumental de genética molecular e de genética das populações tentam mostrar a contribuição da população africana para a formação do povo brasileiro. Segundo o estudo estima-se que 89 milhões de brasileiros são afro-descendentes e aproximadamente 146 milhões de brasileiro apresentam mais do que 10% de contribuição africana em seu genoma. Assim, os autores questionam “pode a genética definir quem deve se beneficiar de cotas universitárias e das ações afirmativas?”

Para essa questão é necessário entender que o conceito de raça, biologicamente, não é aceito, uma vez que somente 0,01% do genoma humano varia entre dois indivíduos. Para os autores a resposta ao questionamento anterior é um enfático NÃO.

Porém, o conceito de raça não é apenas um conceito biológico, mas apresenta um sentido histórico e social do qual os movimentos sociais negros não estão dispostos a abrir mão. Para pensar além da biologia precisamos pensar sobre o conceito de autodeterminação.

A autodeterminação, para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, está num campo de tensão existente nos direitos humanos — a tensão entre os direitos individuais e coletivos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos só reconhece dois sujeitos de direitos: o indivíduo e o Estado. Assim, os povos só seriam reconhecidos na medida que fossem transformados em Estados. Entretanto a declaração não abarca os direitos de grupos sociais, como por exemplo os LGBT, as mulheres, os povos indígenas, os negros, etc. Surgindo, posteriormente, diversos documentos que versam sobre os direitos desses grupos (em 1981 a carta magna sobre o direito das mulheres, em 1963 contra a discriminação racial, etc).

Com o tempo, o direito à autodeterminação é reconhecido e faz que o indivíduo possa se afirmar pertencente a um determinado grupo e podendo, assim, brigar pelos seus direitos.

E o que a política de cotas tem a ver com isso?

Para o professor da USP Kabengele Munanga há uma difícil tarefa que é a determinação de quem é negro no País.

O professor explica:

“No contexto atual, no Brasil a questão é problemática, porque, quando se colocam em foco políticas de ações afirmativas — cotas, por exemplo –, o conceito de negro torna-se complexo. Entra em jogo também o conceito de afro-descendente, forjado pelos próprios negros na busca da unidade com os mestiços.”

A política de cotas raciais tem como objetivo uma reparação histórica, mas que se busca como temporária, afinal, esperamos que chegue o tempo em que elas não serão necessárias. Como definir quem será beneficiado? Pela autodeterminação. Assim, a autodeterminação torna-se o melhor caminho — por mais contestado que possa ser.

Kabengele Munanga afirma:

“Se um garoto, aparentemente branco, declarar-se como negro e reivindicar seus direitos, num caso relacionado com as cotas, não há como contestar. O único jeito é submeter essa pessoa a um teste de DNA. Porém, isso não é aconselhável, porque, seguindo por tal caminho, todos os brasileiros deverão fazer testes.”

O professor também afirma que a política de cotas deve ser um cruzamento entre a autodeterminação com fatores econômicos e sociais, mas nem sempre isso é levado em consideração.

Se para a genética muitos de nós somos afrodescendentes e para a sociologia o melhor critério possível é a autodeterminação, não podemos afirmar que o rapaz que se declarou cotista esteja ilegal. Também não podemos afirmar que aquele rapaz preto (cor de pele), mas sem uma identidade negra, não esteja apto à política de cotas.

A discussão, para mim, está centrada em outro aspecto que não tange a legalidade.

É a moral.

Um concurso para o Itamaraty irá aprovar um diplomata, ou seja, um servidor público que será responsável pelo estabelecimento das relações entre as nações. Se legalmente não podemos fazer nada contra o jovem branco (por cor de pele), sem identidade negra e que se declarou negro, ou pelo preto (cor de pele), sem identidade negra , mas que se declarou negro — ambos por interesses pessoais –, não podemos perder de vista a questão “que tipo de diplomata queremos para o nosso País? Esse rapaz faz parte de nossos anseios?”

Para mim, não. Não é possível ser admitido um indivíduo que se utiliza de uma questão pública séria, como a política de cotas, para obter vantagens pessoais. Os fins não podem justificar os meios.

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