Quando Brooks e Hooks encontram Balduíno, por Eliana Alves Cruz

O titulo deste texto pode parecer uma loucura, pois junta a poeta Gwendolyn Brooks e a ativista Bell Hooks, ambas norte-americanas, e Antônio Balduíno, protagonista de Jorge Amado no romance Jubiabá, mas se o leitor vencer a primeira resistência verá que as duas mulheres negras da parte de cima do continente têm muito a dizer sobre o homem negro imaginado pelo escritor branco, na parte de baixo.

Por Eliana Alves Cruz, do Revista Philos 

Imagem retirada do site Revista Philos

Gwendolyn Brooks (1917-2000), primeira afro-americana ganhadora do prêmio Pulitzer de Poesia, escreveu em 1959 um poema intitulado “We real cool”, que traduzido é algo como “Somos legais de verdade”, “A gente é muito legal” ou “A gente é da hora”. Traduzido para jovens na Bahia, por exemplo, poderia ser “A gente é massa”, na gíria carioca dos adolescentes de 2019, “Nós é brabo”. O texto é genial porque com técnica, métrica, sonoridade e uma refinada ironia ela consegue em pouquíssimos versos falar sobre juventude negra, extermínio, falta de acesso a educação, entre outras coisas que afligiam e ainda afligem a comunidade negra.

O poema conta sobre sete jovens que estão numa mesa de bilhar, num salão chamado “Taco de ouro”. Declamado (existe vídeo na internet com a própria Gwendolyn recitando-o em 1959) ele tem uma musicalidade, um “swing”, eu diria uma certa “displicência arrogante” proposital. Algo muito próprio da adolescência, um período da vida em que não apenas, mas especialmente os homens, querem se auto-afirmar. A tradução abaixo é de Lauro Amorim.

We real cool
The pool players
Seven at the golden shovel
We real cool. We
Left school. We
Luker late. We
Strike straight. We
Sing sin. We
Thi gin. We
Jazz June. We
Die soon.

A gente é da hora
Jogadores de sinuca
Sete no taco de ouro.
A gente é da hora. A gente
Largou a escola. A gente
Embala na balada. A gente
Ataca na tacada. A gente
Xinga sim. A gente
Ginga gim. A gente
Funkeia fevereiro. A gente
Morre bem cedo.

O romance “Jubiabá”, de Jorge Amado, traz um personagem que bem poderia estar nesta mesa de sinuca. O protagonista Antônio Balduíno não morre cedo, mas é o mesmo jovem negro que se vê preso dentro de uma realidade violenta, que o aprisiona dentro de um contexto que inclui tudo, menos o amor. Contexto excludente de afeto. E afeto é muito diferente de desejo erótico, que é algo forte nas obras de Jorge Amado. O adolescente vai para as ruas, ganha as ruas, é o “imperador da cidade negra da Bahia”. Tem a estima dos outros meninos, mas sempre de forma violenta.

“O grupo era unido e os moleques se estimavam, talvez. Apenas só sabiam mostrar essa estima dando socos nas costas dos outros e dizendo nomes feios. Xingar com voz doce a mãe do companheiro era o maior carinho que qualquer daqueles negros risonhos sabia fazer.” (Pág.78)

Em 2004, a ativista social, teórica feminista, artista e autora Gloria Jean Watkins, conhecida pelo pseudônimo de Bell Hooks, lançou inspirada no poema de Gwendolyn o livro intitulado “We are real cool: Black man and masculinity” (“A gente é muito legal: Homem negro e masculinidade”). A obra de Hooks traz uma das análises mais doloridas sobre a relação que a sociedade americana estabelece desde sempre com o homem negro: “Infelizmente, a verdade que é um tabu falar que esta é uma cultura que não ama homens negros (…). E que a maioria dos homens negros não amam a eles próprios (…)”. (Pág.10)

O protagonista de Jubiabá é um estivador e lutador de box. No princípio um jovem, como já foi dito, que poderia estar na mesa de bilhar do poema de Gwendolyn Brooks e que desde a infância vive intensamente o desamor do texto de Bell Hooks, pois vai viver como agregado na casa de uma família branca. É fácil atestar os direitos travestidos de bondade:

No entanto o comendador era bom para ele. Até o botou na escola pública (…), – (Pág. 54);

os castigos:

“…Assim ia correndo sua vida, entre brincadeiras com Lindinalva (…) e brigas com Amélia, que diariamente fazia queixa a dona Maria das “molecagens deste negro sujo” e lhe dava, às escondidas, surras ferozes”. (Pág.55);

a negação de sua humanidade:

Antônio Balduíno chefiou todas as malandragens que os alunos da escola fizeram naquele ano. Cedo foi expulso como incorrigível. Amélia disse a dona Maria: — Negro é uma raça que só serve para escravo. Negro não nasceu para saber.” (Pág.55)

Em “We are real cool: Black man and masculinity”, Bell Hooks continua:

Como eles poderiam amar cercados de tanta inveja, desejo e ódio? Na Cultura imperialista, supremacista branca, capitalista, patriarcal, machos negros são temidos, mas não são amados. (…) Dentro da construção da individualidade do homem negro dentro de uma sociedade branca, capitalista e patriarcal, está a imagem de um bruto, selvagem, insensível, primitivo e desprovido de inteligência”. (Pág.10)

Os trechos acima são poucos exemplos dos muitos que concretizam e explicam meu incômodo quando, ainda adolescente, li este romance de Jorge Amado. E sempre que leio sobre masculinidade, em especial sobre masculinidade negra, Antônio Balduíno me vem à mente, como uma das sínteses poderosas sobre as questões que envolvem os homens no Brasil. Para os que não lembram, Antônio Balduíno é um estivador, lutador de boxe, que ao longo da trama vai se conscientizando da realidade política e social em que está inserido.

Quando o personagem é ainda criança e vê pela primeira vez seu grande amor, a menina branca Lindinalva, filha de um comendador português, as questões com a masculinidade negra explodem no campo afetivo, pois ainda na juventude é acusado injustamente de molestá-la e passa então a idealizá-la e a vê-la em todas as relações.

“E daí por diante, dormisse com que mulher dormisse, era com Lindinalva que o negro Antônio Balduíno estava dormindo.” (Pág.60)

O texto pesa ainda mais a mão na forma como são retratadas as meninas e moças pretas ao longo da narrativa:

“ (…) Mas Antônio Balduíno,que estava acostumado com as negrinhas sujas do morro, achou Lindinalva parecida com as figuras das folhinhas que seu Lourenço distribuía entre os fregueses pelo Natal.” (Pág.52)

Não existe espaço para o amor nos relacionamentos de Balduíno com as mulheres negras de sua vida, pois o espectro de Lindinalva (que o olha com medo e nojo) paira sempre entre eles.

“Antônio Balduíno avisou:

— Nós hoje vai à macumba na casa de Jubiabá. É dia do teu santo, meu bem. Iam à macumba e depois se estendiam no areal, onde se amavam raivosamente, Antônio Balduíno vendo no corpo de Joana o corpo de Lindinalva” (Pág.89)

O romance Jubiabá diz bastante sobre o que permeia algumas relações de homens negros, pois seu personagem principal adquire uma verdadeira obsessão por Lindinalva, um amor platônico que por vezes ao longo da história chega muito perto do ódio. Ele não consegue realizar este desejo e tão pouco oferecê-lo a outras mulheres, que por não se encaixarem na figura da mulher branca almejada, se tornam invisíveis:

— Ela era uma lindeza…
— Lindeza…
Antônio Balduíno confundia a negra Maria dos Reis com a branca Lindinalva. (Pág.124)

Passados mais de 80 anos da escrita de Jubiabá, Bell Hooks diagnostica em seu texto “Vivendo o amor” o que faz deste campo, o dos relacionamentos afetivos, um terreno minado ainda hoje para negros e negras nascidos na diáspora africana.

“Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, “feridos até o coração”, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor.” (Pág. 1)

Vemos ainda hoje mulheres que raramente vivenciaram o amor pelo que são e homens treinados a não enxergá-las ou fazer delas “reflexos de Lindinalvas”. É fácil perceber que o autor naturalizou e reproduziu na escrita os padrões euro centrados, o processo secular de inferiorização do negro, os fetiches construídos ardilosamente e doentiamente explorados por eras e que estão postos em conteúdo e forma da história escrita em um tempo onde nem por sonho estes questionamentos existiam.

No entanto, à luz de todas as vivências e reflexões desde o longínquo ano de 1935, quando Jorge Amado pôs Jubiabá no mundo, sabemos ao menos onde começam os nós que impedem o tão falado e ainda pouco praticado amor próprio. Quem sabe neste futuro em que nos encontramos possamos, ao invés de reproduzir dores do passado, começar finalmente a curá-las.

“Assim poderemos acumular forças para enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura” (Bell Hooks. Vivendo o amor. Pág.12).


Eliana Alves dos Santos Cruz (Rio de Janeiro, 1966). É jornalista e escritora brasileira, nasceu no Rio de Janeiro, onde atua como chefe do Departamento de Imprensa da Confederação Brasileira de Esportes Aquáticos, sendo também vice-presidente do Comitê de Mídia da Federação Internacional de Natação – FINA. Nesse campo de trabalho, visitou dezenas de países e participou de três Olimpíadas, vinte Campeonatos Mundiais e inúmeros eventos nacionais ligados ao esporte aquático, sendo também responsável pelo site www.blacksportclub.com.br, voltado para o resgate da presença negra no esporte. Como escritora, vem se destacando na ficção, inicialmente com o romance Água de barrela, fruto de cinco anos de pesquisa sobre a história de sua família desde os tempos da escravidão. Em 2015, o livro foi contemplado em primeiro lugar no Prêmio Oliveira Silveira, concurso promovido pela Fundação Cultural Palmares, que o publicou no ano seguinte. Em 2016, integrou a edição 39 da série Cadernos Negros, com poemas de sua autoria. E, no ano seguinte, contribuiu com dois contos para a 40ª edição dos Cadernos, entre eles a narrativa de ficção científica intitulada “Oitenta e oito”. Neste mesmo ano, participou também da premiada antologia Novos poetas. Empenhada no resgate da memória social e cultural afro-brasileira, seu mais novo romance – O crime do cais do Valongo – figura como romance histórico e policial, com uma instigante narrativa que se inicia em Moçambique e chega até o Rio de Janeiro.

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