Quando deixei de ter consciência “humana” e passei a ter consciência de que era Negra?

Para responder essa pergunta preciso esclarecer alguns pontos de grande relevância para essa questão. Sou filha de pai negro e mãe branca. Eles separaram-se quando eu tinha 5 anos e eu o via, mas não convivia com ele. A família do meu pai mora a mais de 500 km de distância. Cresci com a família da minha mãe em um bairro de brancos.

Por Fernanda Rosas Marques para o Portal Geledés 


1987 – Pré escola. Eu escutava algumas colegas dizendo umas as outras que não deveriam ser minhas amigas. Um dia levei um brinquedo caro e diferente para escola. Todos brincaram e conversaram comigo. Foi ótimo! Mas eu esqueci o brinquedo na sala de aula. No outro dia eu disse que o brinquedo era meu e que eu queria leva-lo para casa. A professora não deixou eu levar o brinquedo para casa porque duvidava que fosse meu.


1988 – Recebi a alcunha que me acompanharia por bons 3 anos. NEGA CABELO DE BOMBRIL.


1989 – Todos meus colegas foram convidados para o aniversário da Vanessa menos eu. No último dia, depois da Vanessa insistir muito com a mãe, fui convidada. Eu sabia todas as coreografias da Xuxa e não tinha medo de dança-las. Logo dancei, dancei, dancei e fui chamada pela mãe da Vanessa que me disse algo que eu só vim a entender muito mais tarde: “Como é bom quando nos enganamos com as pessoas para o bem. Eu pensei que tu era má mas vi que tu és boa.”


1990 ou outro ano não lembro – Fui uma criança asmática que passou grande parte da vida em hospitais. Certa vez estávamos eu e minha mãe. O médico atendendo com muita má vontade, então minha mãe chamou a minha tia. Quando minha tia chegou pressionaram o médico e ele disse: “se vocês querem fazer caridade façam com o dinheiro de vocês, não fiquem trazendo neguinho para comer aqui.”


Em algum momento entre 1985 e 1992 – Eu chamava a Helô para brincar e ele nunca podia. Um dia a Helô estava cansada, chateada e me disse: “A minha mãe não deixa eu brincar contigo porque tu é negra piolhenta.” Eu fiquei triste e contei para a minha mãe que foi falar com a mãe da Helô e depois de esclarecer que eu não era adotada e nem piolhenta tive o aval para brincar com a Helô.


Um colega estava falando no meu ouvido: Black monkey! Black monkey! Eu reclamei com a professora mas ele continuou até que eu bati nele. A professora me mandou pra fora da sala e antes de sair eu joguei o apagador no quadro.


Perseguida por seguranças em todos os lugares. Ignorada por vendedores em algumas lojas. Essa é a minha vida. Me preocupo que seja a vida da minha filha também. Muitos devem passar por isso hoje, tendo seus sonhos destruídos e seu potencial enterrado. Eu penso em quem não tem mãe e dinda branca para pedir CRM do médico e obriga-lo a atender? Morre?


Esses foram alguns dos episódios que ocorreram comigo e lembrei hoje. Mas houveram muitos outros e ainda haverão. Infelizmente!
Chega de “mi mi mi” por hoje…

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