Tony Tornado adentrou o palco do Festival Negritudes e, antes de dizer qualquer palavra, ao lado do filho, Lincoln, ergueu o punho direito. O gesto, sinal de resistência, união, identidade negras, remete ao movimento dos Panteras Negras, nos Estados Unidos, e a Nelson Mandela, líder e ex-presidente da África do Sul. No Brasil, está eternizado no cantor e ator, que no próximo dia 26 completa 95 anos. Quando Seu Tony cerra o punho e levanta o braço, a luta dos afrodescendentes por direitos e bem-viver se reenergiza.
Houve um tempo em que festivais de música apresentavam ao país os seus ídolos. Foi assim com Tony Tornado. Ele ganhou projeção nacional ao vencer o Festival Internacional da Canção de 1970 cantando “BR-3”, com o Trio Ternura e o Quarteto Osmar Milito. A composição de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, que conquistou público e júri, fazia da estrada que levava do Rio de Janeiro a Belo Horizonte, hoje BR-040, metáfora das travessias e percalços da vida. Em plena ditadura militar, Ato Institucional Número 5 (AI-5) instalado, o Maracanãzinho cantou: A gente corre na BR-3 /E a gente morre na BR-3. Na semana dos 137 anos de uma abolição ainda incompleta, inspira.
No ano seguinte, Elis Regina, cantora tão imensa quando saudosa, presidia o júri do festival e se apresentou. Entre as canções, “Black is beautiful”, de Marcos e Paulo Sérgio Valle: Hoje cedo, na Rua do Ouvidor/Quantos brancos horríveis eu vi/Eu quero um homem de cor. Foi a senha para Tornado entrar no palco, se postar ao lado da cantora, cerrar o punho, erguer o braço… e ser preso. Ele mesmo contou em entrevista ao gshow, às vésperas do Dia da Consciência Negra, em 2022:
— Quando ela cantou “Eu quero um homem de cor”, pensei: “Sou eu”. Subi ao palco, fiquei do lado da Elis Regina, ergui o braço e o punho. E, claro, já desci com ele algemado. Apesar da truculência, eu tinha conseguido meu intento, que era o esclarecimento geral de que o negro é lindo, né? Tenho muito orgulho de ser negro. Fui preso, mas com muito prazer, muita satisfação.
Preso no passado, o protagonista desta história — e em plena atividade — foi aplaudido de pé pelo mesmo gesto, ontem, pela biografia, pela franqueza e pela sensibilidade com que tratou da parceria profissional com o filho caçula, que se encontrou no ofício do pai. Na mesa que dividiu comigo e Isabela Reis, minha filha e parceira no podcast Angu de Grilo, e com o casal Aline e Igor, juntos no musical, Tornado disse que Lincoln o “tirou do asilo”. A frase, dita bem ali no Galpão da Cidadania, região da Pequena África, onde o Rio nasceu, calou fundo em quem se acostumou a saber de idosos a caminho de retiros. O Negritudes reverenciou também a cantora Alcione, 77 anos; Gilberto Gil, 82, cantor, compositor e imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL); e Neguinho da Beija-Flor, 75, cantor e compositor.
O Brasil é um país que envelhece. De 2000 a 2023, a proporção de habitantes com 60 anos ou mais quase duplicou: de 8,7% para 15,6%. Em 2070, segundo o IBGE, praticamente quatro em cada dez brasileiros serão idosos; 75 milhões ao todo. A esperança de vida ao nascer, que estava em 71 anos há duas décadas, hoje beira 76. Bem antes do fim do século, passará de 83 anos. Aqui, a longevidade é negada a porções numerosas da população, em particular a mulheres e homens negros, expostos historicamente a más condições de habitação, trabalho, alimentação, saúde. E à violência homicida.
No início da semana, Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apresentaram mais uma edição do Atlas da Violência. A publicação, referente a 2023, festejou o menor número de homicídios em 11 anos. O país somou em um ano 45.747 assassinatos; 35.213 mortos tinham pele preta ou parda; um em cada três, de 15 a 29 anos. Em média, 60 jovens perdem a vida por dia no Brasil. Uma pessoa negra, informaram os pesquisadores, tem quase três vezes mais chance de ser vítima de homicídio. Dois terços das mulheres alvo da violência letal são negras. A taxa de mortalidade de idosos é de 14,2 por 100 mil habitantes para homens pretos e pardos; e de 8,8 para os não negros.
Por isso, ver Tony Tornado, quase 95, mais uma vez, erguer o punho em sinal de altivez, resiliência e luta, em plena semana de aniversário da Lei Áurea, faz bem. Encontrar, ouvir e reverenciar Tornado, Alcione, Gil e Neguinho — cada um com uma história de talento, superação e sucesso — inspira, alimenta, conforta. Aos 137 anos de uma abolição até hoje incompleta, são promessa de vida em nossos corações.