Um conhecido de infância, lá do Campo Limpo, me mandou uma mensagem perguntando, de forma irônica, quanto tempo ia durar a indignação pelo rapaz assassinado “por acidente” pela polícia militar na periferia de São Paulo. Ele tem uma tese: a indignação dura o tempo em que o caso for útil para a comprovação de um argumento defendido por grupos de intelectuais, movimentos e organizações sociais.
Quando uma morte não cabe na defesa das bandeiras desses grupos ou quando esses grupos, por serem pequenos e periféricos, não conseguem pautá-la na mídia ou em redes sociais, a história desaparece com a vítima. Há histórias que colam e outras que não.
Ou seja, histórias revoltantes como a de Amarildo, que teria sido torturado e morto pelas mãos da polícia carioca, não caem no esquecimento porque servem como bandeira. Bandeira contra a violência policial, a repressão violenta de manifestações, a desmilitarização da polícia militar e uma série de outras causas justas.
Creio que meu supracitado colega não estava questionando a sinceridade com a qual muitas pessoas se dedicam a essas causas e os efeitos positivos para a sociedade de seu árduo trabalho. Mas, como ele ressaltou, é triste ficar dependendo desse tipo de notoriedade para garantir que haja uma chance da Justiça ser feita. “Porque, na maioria das vezes, a gente volta para a casa a pé, enquanto vocês dão tchauzinho da janela do avião.”
Neste ano, ocorreram mortes, torturas, espancamentos de sem-terra, quilombolas, ribeirinhos, indígenas, no campo, isso sem contar limpeza social de pessoas em situação de rua e da matança de jovens pobres e negros da periferia das cidades.
E você não ficou sabendo da maioria deles.
A mídia tradicional ou mesmo a alternativa não trouxeram todos os casos. E as redes sociais não repercutiram a maioria deles.
Claro que as observações do meu colega transbordam de cinismo. Mas não tenho como deixar de resgatar que, logo no início de seu livro “O jornalismo e o assassino”, Janet Malcolm sintetiza:
“Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente, que se nutre da vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas. Tal como a viúva confiante, que acorda um belo dia e descobre que aquele rapaz encantador e todas as suas economias sumiram, o indivíduo que consente em ser tema de um escrito não ficcional aprende — quando o artigo ou livro aparece — a sua própria dura lição. Os jornalistas justificam a própria traição de várias maneiras, de acordo com o temperamento de cada um. Os mais pomposos falam de liberdade de expressão e do ‘direito do público a saber’; os menos talentosos falam sobre a Arte; os mais decentes murmuram algo sobre ganhar a vida.”
As palavras são úteis não apenas para o jornalista, mas também para o ativista, o intelectual, o político, para todos nós. Todos nós que nos preocupamos com algo apenas quando nos atinge.
Se o problema é do filho ou filha do outro, do desconhecido distante, então que se dane. A verdade é que defendemos liberdades coletivas quando estas nos dizem respeito individualmente. Será que vamos, um dia, conseguir defender o outro simplesmente porque ele é (ou deveria ser) semelhante a mim em direito e dignidade? Será que veremos o outro como um igual?
Poderia ser diferente? Na sociedade em que vivemos, talvez não, uma vez que todos temos nossas preocupações e demandas que limitam a preocupação com a dignidade do semelhante desconhecido.
Tenho certeza de que não só a história do rapaz será esquecida como tantas outras que permanecem vivas apenas pelas pessoas que os amaram. Punir os responsáveis e garantir mudanças pontuais e estruturais para que o caso não volte a se repetir seria o único epitáfio que se espera.
Isso não acontecerá de cima para baixo. Mas quando a parte de baixo colocar a parte de cima, que ganha com sua desgraça, seja ela quem for, abaixo.
Torço, cada vez mais, para que esse dia chegue logo, destronando nosso lugar de fala.
Fonte: Blog do Sakamoto