Quase branca, quase preta – Por: Liliane Gusmão

Lendo o texto ‘Os privilégios de ser uma mulher branca’, sobre feminismo e mulheres negras, tive uma espécie de epifania.

Eu, filha da classe média, de pai negro (auto-identificado como moreno) e mãe branca, conheci o preconceito logo cedo, na escola, apresentado pela minha professora da alfabetização. Talvez tenha conhecido até antes, no apagamento sistemático da parte negra da família de minha mãe. Porém, o episódio com minha professora foi aquele que mais me marcou.

Por muitos anos, a rejeição da minha professora por mim foi um sentimento que não entendia. Não entendia porque ela tinha nojo de mim. Não entendia porque ela, que pegava na mão de todas as outras crianças quando estas eram as primeiras da fila para ir pro recreio, não pegava em minha mão quando era eu a primeira na fila. Não entendia porque era sempre ríspida e debochava de mim quando respondia errado a suas perguntas. Eu tinha seis anos, o cabelo curto arrepiado e a pele parda. A perseguição foi tanta que meus pais exigiram que eu fosse trocada de turma.

Meu lugar na sociedade é um lugar que me rejeitou. Sempre me senti deslocada depois desse episódio com a professora. Todo meu percurso escolar foi uma luta que travei como pude contra esse sentimento. Os ataques que sofria e, que me machucavam, na época nunca tiveram um nome, só depois entendi que era o racismo. A piadinha das amigas com os meus cachos que pareciam cavernas. Ou das menos amigas que externavam sua pena em como eu devia sofrer para dar um jeito no meu cabelo. Do professor que me disse que meu cabelo parecia um ninho. As receitas de minha avó e da minha tia para esticar meu cabelo.

O clímax de tudo isso aconteceu aos 12 anos, quando fiz pela primeira e última vez um alisamento no cabelo. Foi horrível! O produto fedia a amônia e ardeu um bocado em minha cabeça, quebrou muitos fios do meu cabelo e, para minha surpresa e grande decepção, não teve efeito algum. Além do ardor, a partir do alisamento eu teria que me resignar a fazer toucas todas as noites, para manter os cabelos com aparência de lisos. Foi o que fiz naquela noite e nunca mais. Porque minha cabeça doeu tanto, foi tão difícil dormir com o cabelo todo preso com grampos de cabelo, que decidi que esse sacrifício não valia a pena. Isso não era para mim.

A trajetória do meu pai não sei ao certo qual foi. Sei que ele conseguiu chegar à Universidade, apesar de ser negro, apesar de pobre, apesar de trabalhar desde criança para ajudar a sustentar a casa. Filho de uma lavadeira com o patrão dela, não sei se o meu avô participou ou ajudou os filhos que teve com minha avó. Sei que foi ele quem os registrou, o que excluiu minha avó paterna do registro de nascimento de todos os seus filhos com esse homem e, por conseguinte, do meu também. No meu registro de nascimento sou neta de uma mulher que não conheci, nem nunca vi e que era a esposa oficial do meu avô.

Embora minha pele passe por branca, principalmente agora nos longos invernos canadenses, meu cabelo jamais deixa dúvidas sobre a africanidade das minhas origens. Com o tempo, o que era vergonha e rejeição para mim, virou orgulho, tornou-se aceitação. Assumi definitivamente meus cabelos cacheados quando estava na faculdade. Quando consegui finalmente deixá-los longos, descobri produtos para dar-lhes a forma que gosto e produtos específicos para hidratá-los em casa. Um alívio não ter que escutar das clientes do salão que eu estava estirando o cabelo cada vez que ia fazer uma hidratação.

A imigração me fez mergulhar fundo em mim. O exílio me proporcionou uma perspectiva de mim mesma que no Brasil eu não tinha. Não que aqui não exista racismo ou preconceito. Existe, mas ele não é velado como no Brasil. As pessoas aqui tem cor e isso não é necessariamente ruim, nem necessariamente as desabona, ou apaga. Aqui, deixei de ser deslocada para ser uma minoria visível. Essa condição me deu forças e proporcionou um entendimento de mim mesma que eu não tinha. Por exemplo, foi aqui no Canadá que parei de me sentir uma rebelde, como me sentia no Brasil, e passei a me sentir confortável com a minha escolha de não alisar meu cabelo.

Ainda não assumi minha negritude, mas estou nesse processo. Assumir minha identidade negra não é apenas me dizer negra, é abraçar uma luta que apenas comecei a conhecer quando encontrei o feminismo e o grupo das Blogueiras Feministas. Por isso, não me apresento como negra, mas sei também, que não sou branca. Sou não-branca.

 

Fonte: Blogueiras Feministas

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