“Quatro Dias de Rebelião”: Entrevista com Joel Rufino

Joel Rufino dos Santos é referência quando o assunto é literatura infanto-juvenil.

Historiador e escritor, ele também é sempre mencionado quando os temas perpassam o universo da cultura popular, da luta social e da igualdade de direitos para os afro-descendentes, embora faça questão de não se nomear militante do movimento negro “para não ser injusto com aqueles que vestem a camisa, fazem passeata, saem em protesto”, explica.

Mas é na literatura que Joel deixa claro suas posturas políticas e filosóficas.

Doutor em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, na qual também é professor, ele conversou com o Magazine sobre a reedição de “Quatro Dias de Rebelião”, livro voltado para o público jovem, no qual o escritor une ficção e realidade para narrar os fatos que cercaram a Revolta da Vacina Obrigatória, como ficou conhecido o levante popular ocorrido em 1904.

Durante quatro dias de rebelião, os populares do Rio de Janeiro tomaram conta da cidade, surraram vacinadores, invadiram prédios públicos, destruíram a iluminação das ruas. A vacinação obrigatória foi o estopim para os populares esgotados com a péssima situação social e financeira na época.

Quase 30 anos após o lançamento da obra e mais de cem após a rebelião, o autor constata que a distância entre os interesses da elite e do povo continua a mesma.

O TEMPO – O que o motivou naquela época a narrar os fatos que envolveram a Revolta da Vacina?
Joel Rufino dos Santos – Esse é um livro antigo que está sendo reeditado. E, na ocasião, estava muito sensibilizado pelas manifestações populares, pelos levantes do povo, pela coragem de ir contra o que estava sendo imposto.

Estávamos no apogeu da ditadura militar e eu, como tantos outros escritores, estava sensibilizado por essas reações vindas diretamente do povo.

Esse fato na história do Brasil é muito singular, cada um dos lados tinha uma boa versão a defender. Como você avalia as razões dos higienistas e dos populares?

Eu não tomo partido como escritor e narrador. O Oswaldo Cruz e os higienistas tinham lá suas razões, assim como os populares. O importante para mim na construção dessa narrativa foi a distância entre esses dois lados, a falta de interesse comum entre as elites econômicas e o resto dos cidadãos.

Só que as razões do povo são, do meu ponto de vista, mais legítimas. Mas isso é filosofia. E o impressionante é que, mesmo anos após o fim da ditadura, esse fosso entre os desejos do povo e da elite continua o mesmo. Se é que não aumentou.

No livro, você mistura personagens reais e fictícios. Como é essa criação?
Como eu fiz em outras histórias para jovens, uso personagens reais, fatos históricos, e também personagens inventadas, dialogando com personagens reais. O “Quatro Dias de Rebelião” é um romance histórico. E, nesse gênero, o que importa é a verossimilhança, não a verdade factual.

A obra é um olhar sobre uma revolta popular. As ações oriundas do povo são um tema recorrente na sua produção?
Eu diria que há uma sensibilidade pessoal, que faz parte da minha personalidade. Sou de origem popular, levo um estilo de vida simples, sou peladeiro. O outro fato é uma visão de mundo, política, de luta social. Por isso eu me interesso naturalmente por esses temas.

Mais uma vez você se dedica à literatura infanto-juvenil. O que te motiva a escrever para esse público?
Eu comecei a escrever para esse público meio por acaso. A Ruth Rocha me chamou para escrever quando eu estava semiclandestino nos tempos da ditadura. Eu estava sem emprego e ela me conheceu através de uma ex-aluna.

Mas, desde aquela época, acredito que quem escreve para jovem ou criança imagina que está conversando com um menino, uma criança imaginária.

Para o ‘Quatro Dias de Rebelião’, pensei: ‘Está aqui diante de mim um garoto de 12 anos’. Isso me dá muito prazer: dialogar com uma pessoa que eu inventei e está apenas na minha cabeça.

Você afirma em uma entrevista mais antiga que a produção de literatura infantojuvenil no Brasil costuma esbarrar num conservadorismo moral e pedagógico. De que forma sua literatura foge dessas armadilhas?

Saio dessas armadilhas com uma convicção filosófica: o moralismo não pode ser instrumento para compreender o mundo. Outras coisas são mais importantes que a moral, por exemplo, a ética e a luta pela justiça social.

O didatismo e a pedagogia só acontecem com o escritor que não confia no poder da literatura, da ficção, da imaginação. Utiliza a fantasia para ensinar. Eu confio no poder da ficção, não preciso ensinar nada. Ela acrescenta por si só um conhecimento novo, único ao que as outras ciências oferecem.

Você é um dos mais conhecidos militantes da luta social, entre elas a causa da igualdade de direitos dos afro-descendentes. A quantas anda essa sua relação com a militância?
Sempre estive na contramão do movimento negro. E não me intitularia militante para não ser injusto com quem faz passeata, veste a camisa, se dedica plenamente a essa causa.

Agora, quanto à luta social em geral, procuro me colocar no ponto de vista dos trabalhadores. E procuro fazer da minha literatura a maior ferramenta de militância.

Quais são seus próximos projetos?
Tem sempre alguma coisa no prelo. Está para sair em breve uma história que se passa em um morro carioca, intitulada “O Judeu da Prestação e o Sargento da Motocicleta”, pela editora Moderna.

Também é voltado para adolescentes de 12 a 15 anos, e aborda a repressão, o crime, o trabalhador, o policial. Um pouco do contexto dos morros nos dias de hoje.

Fonte: Jornal Irohin

Matéria original: Entrevista com Joel Rufino

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