Somente no ano de 2017, dezoito lideranças quilombolas foram assassinadas. De acordo com o “Relatório Racismo e Violência contra quilombos no Brasil”“, publicado em novembro de 2018, o racismo é o elemento estruturante dessa violência. Especialmente o racismo institucional, que nega o direito à terra às populações negras e o racismo ambiental, que faz com que as leis tenham “dois pesos e duas medidas”. A mesma legislação que dificulta a produção de roças em terras quilombolas autoriza grandes empresários a construírem resorts e outros empreendimentos em terras ditas de “proteção ambiental”. Servindo, portanto, de instrumento para a manutenção das desigualdades raciais.
O relatório enfatiza o quanto o sistema de justiça brasileiro tem a sua parte de responsabilidade nesse cenário de violação de direitos. São constantes as tentativas de enfraquecimento do direito constitucional ao território, ao mesmo tempo em que as múltiplas violências dirigidas à população quilombola são ignoradas pelas leis brasileiras. São corpos e vidas que se colocaram em defesa da terra e por isso tombaram. Marcando o lugar de protagonistas, o Coletivo Mulheres da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) colaborou diretamente na organização da elaboração e publicação do relatório mencionado. Givânia Silva, uma das coordenadoras desse trabalho, afirmou que para produzir os dados do relatório foram utilizados documentos do acervo da CONAQ, notícias de jornais, redes sociais e outras publicações. Nesse processo de registro de dados oficiais pode ser observado o descaso com as vidas negras, tendo em vista que, muitas vezes, as lideranças assassinadas nas lutas pela terra são noticiadas apenas com os apelidos, sem seus nomes completos. Por isso, os depoimentos das famílias das pessoas assassinadas foram as fontes mais importantes.
Muitos ainda não interpretam a luta das mulheres como uma ação política. No entanto, elas são o elemento estruturador das comunidades na luta por direitos. Existem situações de violência e subjugação das mulheres denunciadas pela CONAQ que contam histórias desse protagonismo. Sendo que, na maioria dos casos, elas sofreram essas violências justamente por estarem exercendo atividades de liderança e/ou erguendo suas vozes contra a opressão.
Nilce Pereira, liderança do quilombo Ribeirão Grande e Terra Seca, que entrevistei para minha tese de doutorado “O protagonismo das mulheres nas lutas por direitos em comunidades quilombolas do estado de São Paulo (1988-2018)”, e também para o artigo “Existe solidão na Luta”, publicado na Coletânea “Solidão” (2021) da Feminist Press, costuma enfatizar que o uso da violência para tentar reduzir a força das mulheres que são lideranças “é uma forma da sociedade exercer a supremacia do branco, o machismo e sexismo”. Para Nilce é muito importante que exista um olhar diferenciado e um espaço dentro das organizações e grupos de mulheres que estão na luta nos quais elas possam demonstrar as suas fragilidades: “Eu entendo que quando nós falamos da solidão da mulher negra, estamos falando que aquelas mulheres militantes, guerreiras que estão na luta, elas precisam ser abraçadas, acarinhadas e ser estimuladas a colocar pra fora as suas fragilidades também, não é só lutar, mas é tirar um momento pra sentir as coisas, para se perceber, pra se sentir e muitas vezes nós não encontramos esses espaços.”
Ao fazer essa afirmação, Nilce traz à tona o estigma sofrido pelas mulheres negras de que precisam ser fortes e “guerreiras” o tempo todo. Aliás, esse é um dos adjetivos mais utilizados para classificar as mulheres negras. Em seu livro “E eu não sou uma mulher? Mulheres Negras e o Feminismo”, bell hooks afirmou que essa ideia da “mulher negra onipotente” é um mito que faz com estas mulheres pensem que o correto é sofrer silenciosamente todas as opressões da vida. A capacidade de suportar sofrimento não deveria ser vista dessa maneira romantizada, como sinônimo de força. Ao considerar as mulheres negras como “fortes” e “guerreiras” por carregarem o mundo nas costas, suportando sozinhas a criação dos filhos, a exploração no trabalho, a violência racial e a violência masculina, camufla-se a condição de opressão e de negação de direitos que é imposta a maioria de nós.
Essa caracterização da mulher negra que resolve tudo sozinha e não precisa de apoio para nada na vida já deveria ter sido desconstruída, desde quando Sojourner Truth, em 1851, proferiu o seu famoso discurso “E eu não sou uma mulher?”. Ao questionar se ela por ser negra não seria também uma mulher, revelou o quanto pode ser perversa a cristalização do estereótipo da mulher negra como uma pessoa que é forte o tempo todo. Se o lado guerreiro das mulheres negras foi o que permitiu a manutenção da vida e da cultura negra do período da escravidão até hoje, por outro lado, essa força e coragem não podem servir de incentivo ao racismo. Nem para negar às mulheres negras o direito à fragilidade, ao cuidado e à proteção também.
Dessa maneira, reafirmamos as narrativas das mulheres quilombolas que estão focadas naquilo que as definem: a relação com a terra e com o território. O protagonismo político das mulheres é determinante para a existência dos quilombos contemporâneos. Embora as frentes de luta apresentem muitas convergências com a pauta do feminismo negro das mulheres negras urbanas, acadêmicas e/ou periféricas, a agenda de luta das mulheres quilombolas possui suas próprias especificidades e isso deve ser lembrado por todas/os nós. A terra, o quilombo, o território é espaço de luta e é também o lugar da restauração da força e de renovação das energias. É onde se planta o alimento que serve de nutrição e cura para o corpo, mas é onde repousam os ancestrais. Portanto, é também onde se cura a alma.
A professora e líder religiosa Makota Valdina lembrava sempre da energia vital que o corpo feminino possui. É o axé de maternidade que não tem a ver com ter parido ou desejar parir filhos no sentido biológico. É a energia matrigestora, presente em toda mulher, que faz com que estejamos sempre em batalha pela vida digna para nós e para a comunidade a qual pertencemos. Cabe ao restante da sociedade amparar e proteger as mulheres negras para que possamos num “afrofuturo” ter também direito a momentos de descanso e paz.
Assista ao vídeo da historiadora Silvane Silva no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental:
EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas – negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc. – com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).
EF09HI36 (9º ano: Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência.)
Ensino Médio:
EMIFCG07 (Reconhecer e analisar questões sociais, culturais e ambientais diversas, identificando e incorporando valores importantes para si e para o coletivo que assegurem a tomada de decisões conscientes, consequentes, colaborativas e responsáveis);
EMIFCHS07 (Identificar e explicar situações em que ocorram conflitos, desequilíbrios e ameaças a grupos sociais, à diversidade de modos de vida, às diferentes identidades culturais e ao meio ambiente, em âmbito local, regional, nacional e/ou global, com base em fenômenos relacionados às Ciências Humanas e Sociais Aplicadas).
Silvane Silva
Doutora em História (PUC-SP)
E-mail: [email protected]
Instagram @silvane.a.silva
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