Racionais MC’s, professores de gerações

Grupo de rap foi reverenciado na Unicamp como parâmetro para a reflexão sobre o racismo e a desigualdade no país

“Eu vou ficar bem na frente”, comemorou o aniversariante Malik Miguel, que completava 10 anos no dia 30 de novembro. O presente não podia ser melhor: ver três integrantes dos Racionais MC’s, que participavam de uma aula na Unicamp. “Nego drama”, respondeu, indicando sua música favorita. “Meu primo me apresentou Racionais, e fui ver o que era. Essa foi a primeira música que ouvi e ficou marcada”. Horas depois, Malik saía do auditório com a família. Na camiseta, acompanhavam a estampa do Pantera Negra as assinaturas de Mano Brown, KL Jay e Ice Blue.

Referências do protagonismo negro nunca faltaram, mas o racismo que fundamenta a sociedade brasileira buscou apagá-las. Desde a criminalização da capoeira e do samba, passando pela recente tentativa de censurar gêneros como o rap e o funk, expressa em projeto de lei de 2019, muitas são as barreiras criadas para o reconhecimento da cultura afro-brasileira.

Por isso, a ida dos Racionais MC’s à Unicamp foi classificada pelo público como histórica. “É um grande feito os Racionais estarem dentro de uma das melhores universidades da América Latina, poder trazer meus filhos para que eles tenham essa representatividade na vida deles”, disse Marcela Reis, coordenadora social da Central Única de Favelas (CUFA) de Campinas e mãe de Malik.

Ao lado dela, a presidente da CUFA Campinas, Michele Eugênio, também indicava a importância da noite. “Quando a gente vê os nossos num lugar de fala tão potente, fica muito feliz. Conseguimos mostrar isso para nossas crianças e adolescentes, apontando um caminho. Isso é um momento histórico pra gente.”

“Somos o que somos”, da sobrevivência às cores

Historicamente marginalizado, o rap no Brasil tem como marco os Racionais MC’s, grupo criado em 1988 por Mano Brown, KL Jay e Ice Blue e Edi Rock. Com quatro álbuns e dois EPs, os Racionais expressam a vivência de boa parte da população brasileira nas periferias do país. “É uma referência não só musical, mas de sobrevivência para o nosso povo preto e periférico”, sintetizou Reis.

Enquanto homens negros, os quatro integrantes expõem as dores e as lutas contra o racismo. “O rap conta a história de cada um da periferia. Onde tiver negro e periférico, a gente tem essa semelhança de vida e de ancestral”, analisou Ice Blue na aula. Para ele, as vivências colocadas nas letras foram, ao longo da carreira, sendo trabalhadas de forma mais estratégica. “Essa revolta virou inteligência. Era uma revolta inconsequente e agora está mais estratégica. Agora está perigosa. Não tem só a arma e a força, tem a inteligência.”

Além disso, segundo Mano Brown, o grupo foi acompanhando os momentos políticos do país. Comparando o álbum Sobrevivendo ao Inferno (1997), obra que entrou como leitura obrigatória do Vestibular Unicamp em 2019, com o álbum Cores & Valores (2014), o artista conclui que houve um movimento do individual ao coletivo e do coletivo ao individual. “[…] o povo tem sede de viver hoje, não depois, lá [no céu]. Isso fez o nosso rap ir do coletivo para o individual, que era o oposto do Sobrevivendo ao Inferno, um disco de estatísticas do coletivo.”

Já Cores & Valores, avaliou o artista, mostra que “nem todos pretos são iguais”, tendo sido escrito em um momento em que as condições de vida nas favelas tinham melhorado, após os governos petistas. “Eu senti que o rap estava defasando. A juventude estava sonhando com coisas mais sofisticadas. É que nem a música do Titãs: a gente não quer só comida, quer outras coisas […]. Foi um disco que humanizou o tal do cara da periferia.”

Em mais de 30 anos de trajetória, que combinou a arte com o ativismo, os Racionais MC’s tornaram-se professores para diversas gerações. No auditório da Unicamp, eles relembraram marcos para o movimento negro e ressaltaram a importância da filósofa Sueli Carneiro, liderança do Instituto Geledés da Mulher Negra, onde se reuniam para troca de experiências e formação intelectual. “Posso dizer que [o Geledés] foi um embrião, uma das sementes para tudo que tem hoje”, disse KL Jay, que rememorou os debates sobre os textos de Malcom X, ativista pelos direitos dos negros nos Estados Unidos, que foi assassinado em 1965.

Desde aquela época, para os integrantes dos Racionais MC’s, o ativismo se fortaleceu, e a maior presença de negros na Universidade contribui para o avanço nas condições de vida de negros e negras, bem como para a pauta antirrascista. “O espaço foi conseguido. A luta é constante. A gente está em guerra, em território inimigo. Um bom resultado eu acredito que vai acontecer, mas é a médio e longo prazo. Já que conseguiram entrar [na universidade], tem que seguir lutando para se manter”, apontou o DJ.

Ice Blue, Mano Brown e KL Jay: “revolta virou inteligência” (Foto: Felipe Bezerra)

“Tá na correria, como vive a maioria”

A presença dos Racionais MC’s na Unicamp foi parte da conclusão da disciplina “Tópicos Especiais em Antropologia IV: Racionais MC’s no Pensamento Social Brasileiro”, ministrada pela professora Jaqueline Santos, para quem os integrantes do grupo são grandes “intérpretes do Brasil”.

Um dos alunos do curso foi Vinicius Santana, estudante do curso de Filosofia que viu na música Mágico de Oz um “desejo de construir uma realidade melhor para aqueles que se parecem comigo”. Natural de Osasco (SP), ele ingressou em 2018 na Unicamp e diz que o rap já havia lhe proporcionado, bem antes, ensinamentos que extrapolam a academia. “Racionais, para mim, foram minha escola fora da escola. Eles foram responsáveis por eu me sensibilizar para a realidade em que eu estava inserido, para eu entender as questões que estavam me cercando enquanto um jovem negro de periferia.”

Na disciplina, foi possível perceber que nem sempre a análise da realidade está expressa em livros ou artigos.  “Quando a gente escuta Holocausto Urbano, por exemplo, o que eles descrevem é muito parecido com o cenário que o Mbembe designa de necropolítica, essa política de morte implementada contra grupos racializados. O que a Universidade depois me proporcionou, os Racionais já estavam sussurrando no meu ouvido há muito tempo.”

Levar os Racionais para a Unicamp, avalia Santana, é um sinal da democratização da Universidade, que aos poucos torna-se mais plural. “[Trazer] quatro homens periféricos que não a acessaram e não têm título de doutorado, mas que ainda assim produzem teorias sobre a experiência negra muito sofisticadas, é um aceno à democratização do acesso à universidade e de ela reconhecer o valor que a gente, enquanto pessoas negras periféricas, já reconhecemos há muito tempo.”

“Afrodinamicamente mantendo nossa honra viva”

A aula com Racionais MC’s na Unicamp reuniu centenas de pessoas, dentre elas artistas de Campinas. Daniel Alves, conhecido como Ciro, que integra o movimento hip hop na cidade há mais de duas décadas e atua na comissão de heteroidentificação do Vestibular da Unicamp, lembrou que, apesar de mais da metade da população ser negra, esta ainda não é a realidade das universidades. “Então não é só um evento, é estar nesse espaço, ocupar com qualidade, mostrar quem somos, porque somos e porque estamos aqui”, observou.

Campinas, lembrou, foi uma das últimas cidades do mundo a abolir a escravidão. Há uma segregação na cidade, assim como no país, que demarca marginalização de negros e pobres. Por isso, segundo o artista, o hip hop na cidade sempre foi entrelaçado ao ativismo. “Para nós não bastou cantar, não bastou dançar, não bastou grafitar. Para nós, o fundamental era colocar nossas ideias em prática a partir do discurso.”

Apesar de ser lembrado pelo conservadorismo, o município, lembrou, também tem um protagonismo importante no movimento hip hop. “Não podemos esquecer que foi a última cidade a abolir a escravidão, a última a enforcar um negro em praça pública, mas também a primeira cidade a lutar e a romper alguns paradigmas. O primeiro conselho de hip hop é de Campinas, a primeira casa municipal de hip hop gerida somente pelo hip hop é da cidade de Campinas.”

De uma família de funcionários da Unicamp, ele falou da importância de estar na universidade enquanto artista. “Estar na Unicamp não só como trabalhador ou como estudante, mas como hip hoper, é fundamental para mim, quebra muitas barreiras.”

“A minha vida toda eu devo ao rap”, concluiu, apontando a música dos Racionais que foi um marco na sua vida: Voz Ativa.

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