Racismo: a moda que nunca sai de moda (ou Por que prefiro colete à jaqueta?)

Houve um tempo em que estudiosos dos mais variados estratos, desejando des(en)cobrir o mundo pelo imperativo da razão, embarcaram em “caravelas”: mapearam as repartições físicas do Globo, descreveram, catalogaram, compararam e classificaram “elementos” que viam pela frente que, posteriormente, foram postos à apreciação em sessões públicas, preleções, palestras e livros. Consigo levaram a bagagem do saber colonial. Esse tempo é, também, o tempo de agora. Ele não cessou, apenas se transformou para continuar sendo o que é e produzindo o de sempre: políticas institucionais racistas.

Por Bernard Teixeira Coutinho, enviado para o Portal Geledés 

O racismo, um dos membros fortes do capitalismo e expressivo vetor da crise civilizatória, virou moda. Que xs leitorxs nos permitam realizar uma rápida rememoração: quando criança, meu pai e eu costumávamos frequentar um boteco (hiper) badalado nos anos 90, localizado na rua principal no bairro em que morávamos. Lá, todos os domingos, experimentávamos uma deliciosa sopa de mocotó. Num desses inúmeros domingos, antes mesmo de pisarmos no boteco, ouvi de um carro de som a seguinte mensagem: “venha experimentar o produto ‘x’, a última moda do verão!”. Imediatamente, devoto à crença de que o mundo sem moda iria acabar, virei-me para o meu pai e lhe perguntei: “pai, como assim ‘última moda’? E agora? Nunca mais haverá outra?” Sua resposta, apressada e reconfortante (para uma criança confusa), foi: “última moda é a moda do momento que, em breve, será substituída por outra”. Se o meu pai estiver certo e se o racismo, de fato, virara moda, não nos restará dúvida de que se trata de uma moda-camaleão.

No tempo em que o racismo dava o tom da vida social moderno-colonial (herdeira de uma psicosfera iluminista), os preconceitos desfilavam a céu aberto. Era a última moda em Milão, Paris e Londres. Era bonito ser racista. Não era crime, apenas convicção de que, uma vez racista, o sujeito tornar-se-ia civilizado. 

A tendência, à época, era o elogio às Missões Civilizadoras, perseguidas pelos mais diferentes “estilistas”. Havia aqueles que seguiam o design racista de J. C. Nott, para quem a civilização era um objeto de alta costura, reservado às “raças avançadas”. J. Nott é o autor por detrás da máxima: “para quem viveu entre os índios americanos é inútil falar em civilizá-los. Seria o mesmo que tentar mudar a natureza do búfalo”. 

Por outro lado, havia aqueles que optavam por um corte menos extravagante e mais voltado a um estilo liberal, como o foram os colonos e publicistas franceses em terras africanizadas. O grupo seguiu uma tendência (pretensa e covardemente denominada) benevolente. Um de seus maiores expoentes, Jules Duval, apoiado naquilo que Smaïl Hadj Ali chamara saint-simonismo colonial, veio a propor uma intervenção fraternal das sociedades superiores, tratando de assimilar as “raças coloridas” de modo a torná-las aptas ao progresso intelectual e moral. É como se o conjunto de peças tivesse de combinar com o formato, o tamanho e a cor do chapéu (que protege o topo do corpo, posição geopolítica reivindicada pelas potências europeias da época), abraçando a obediência em prol do equilíbrio do look. A “intervenção fraterna”, diria Duval, “deve refinar as necessidades materiais, despertar as necessidades morais”.

O modelo civilizatório, desigual e epistemicida, alterou o rumo da prosa até então sustentada por antropólogos e geógrafos do século XIX. Mas alterou no sentido de redizer o que já havia se tornado consenso entre os homens brancos: o outro que represento é a extensão de mim como um ser diferente (no sentido de contrastes estéticos e ético-morais). Não há nisso nenhum apelo ao discurso da diferença, apenas a confirmação de que o racismo é a chave para dominar terras, mentes e vidas.

Mas os discursos animalescos ou “etno-zoo-lógicos”, apoiados em critérios morfológicos e no determinismo ambiental ficaram, de uma hora para outra, cafonas, démodé. A moda, porém, se reinventa (como asseverara meu bom e velho pai) e revisita o imenso repertório do passado. Um exemplo? A viagem “amigável” do presidente Emmanuel Macron no continente africano. O cinismo que o presidente levara consigo, ainda que perverso, desperta certa curiosidade. 

Em seu discurso, proferido na Universidade de Ouagadougou, em Burkina Faso, no dia 28 de novembro de 2017, Macron denunciou a cafonice do passado, ao dizer que faz parte de uma geração de franceses que não conheceu a África colonizada e que, por isso, põe-se em diálogo com os africanos, ciente de que o passado criminoso existe, mas que não compactua com seus postulados. 

Por que sua fala gera curiosidade? Porque, entre um elogio e outro (fruto de um cinismo diplomático globalizado), Macron buscou estabelecer uma relação de confiança entre o seu governo e o anfiteatro lotado, como quem diz “os meus antepassados mataram os de vocês, mas eu venho trazer a chave à liberdade e à fraternidade” (seria um escárnio da sua parte oferecer a chave da igualdade). Lembrou da existência de um “vínculo histórico inabalável” entre a França e a África, marcado por violências, mas, também, pela fraternidade e “ajuda mútua”. 

Esse reforço do mito da “boa civilização” não poderia, evidentemente, ser revelado sem que se acionasse um vocabulário contemporâneo. Se, antes, o fardo do homem branco, que se confinou na tal humanização da humanidade, vendia um caminho ao cosmopolitismo e à civilidade, agora, leva as periferias do Globo ao progresso ou, atualizando ainda mais o termo, ao desenvolvimento. Macron iniciou sua fala elogiando a força da juventude africana e, concomitantemente, sua geração: duas juventudes que, juntas, poderiam ativar uma espécie de resistência ao passado e acelerar o processo desenvolvimentista.  

Bom, no fim das contas, sua visita nada mais foi do que um convite a uma nova assimilação. Antes, o governo francês fechava as escolas africanas e estiolava o cotidiano das pessoas que foram, paulatinamente, sendo chamadas de negras e africanas. Elas, que não eram nem uma coisa nem outra, também foram obrigadas a aprender a língua do colonizador. E foi, através dela, que Macron propôs um intercâmbio ou uma rede de “colaboração”, fornecendo equipamentos tecnológicos e acesso à internet para as universidades, oferecendo acesso gratuito aos materiais de bibliotecas francesas etc. 

Sabe aquela jaqueta herdada da avó materna, socada no fundo do guarda-roupa, que muito se vê pelas ruas de cidades do mundo inteiro? Pois é! O segredo para não se envergonhar com o uso da peça maltratada pelo tempo é apelar para a customização. Essa é a política de Macron: usar uma peça velha, sem dela se envergonhar. Ora, a melhor maneira de não ser confundido com a ultradireitista Marion Anne Perrine Le Pen ou associado ao racismo abraçado pela extrema-direita é enfeitar o discurso.

Ao anunciar sua Assistência ao Desenvolvimento (em outras palavras, capital girando livremente no continente africano), ele busca oferecer “autonomia” aos estudantes. Ocorre que “autonomia”, no vocabulário neocolonialista do governo francês, é um muro simbólico que se constrói e que impede que esses mesmos estudantes e “futuros líderes”, ainda que pisando na França, permaneçam na Europa. 

A estratégia é simples: estimula-se a ida de jovens estudantes à França, numa tentativa de qualificá-los como forças de trabalho para o futuro. É esta uma tentativa de aquecer regionalmente o capital com uma volumosa População Economicamente Ativa fora da Europa. O atual governo francês, enxergando o continente africano como um verdadeiro laboratório e arquitetando desastrosas geografias dos rejeitos, busca oferecer o conhecimento técnico europeu aos africanos de modo a instrumentalizá-los e prepará-los para um retorno inegociável (numa tentativa de desestimular possíveis fugas de cérebros, por exemplo). O ser “africano” serve à espoliação capitalista como mão-de-obra e não como migrante.

A agenda de exploração do governo francês se afirma incluindo precariamente países africanos na globalização econômica, criando uma espécie de “chamamento” à África: a “mudança mundial” dela depende de uma colaboração que, se frustrada, abrirá margem para o que ele chamou de miséria, sofrimento e para um “longo período de migração”. 

Enquanto o seu discurso carismático e sedutor diz que “as diásporas africanas na França também estão no centro de nossa abertura ao mundo”, desumaniza indocumentados e solicitantes de asilo (vide o movimento gilets noirs), enrijece as fronteiras com países da União Europeia e cria muros visíveis e invisíveis. No meio dessas políticas migratórias, o racismo é ocultado, como se desaparecesse da política governamental. 

O seu discurso, com um sorriso nos lábios, é impositivo, e o faz enganando com boas maneiras. Agora, não há razão para se envergonhar da jaqueta renovada. Bem parece que a ideia “ele é mais racista que eu” livra o atual governo francês das práticas racistas institucionalizadas. A jaqueta ainda está sendo usada. Ela foi renovada, sim, mas continua sendo uma jaqueta em uso. O mundo da moda chama isto de vintage ou retrô (ei de aprender, um dia, a real diferença entre as duas), e, Aníbal Quijano, de colonialidade do poder.

O racismo está em “nossa” forma de vestir os padrões de conhecimento sobre o mundo. Ele é um modo de vestir, de se exibir, de ser e, para lembrar Étienne Balibar, de pensar. O racismo está aí sendo esfregado em nossas caras e, às vezes, sem vergonha alguma. Que essa moda não vingue! Que essa moda não pegue! Que essa moda desapareça!

Bernard Teixeira Coutinho (Arquivo Pessoal)

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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