Racismo ambiental: derivação de um problema histórico

Se o desmatamento das florestas não pode ser visto de forma natural, a presença maciça de afro-brasileiros nos bolsões de miséria também não.

Por Nelson Inocêncio *

O desenvolvimento da pesquisa no campo das relações raciais evidencia o quão complexo é este assunto, tanto que hoje o racismo como fenômeno social passa a ser visto a partir de suas derivações e, portanto, a ser analisado por diferentes flancos. Assim se constroem as novas terminologias como “racismo institucional” e “racismo ambiental”. Quanto a esta última, que é o foco deste modesto artigo, vale destacar a sua relevância em uma conjuntura na qual o perene inchaço das grandes cidades causa estarrecimento.

Diante dessa situação, podemos observar que a questão ambiental é mais complexa do que muitos imaginam. Embora o argumento que reitera a superação da pobreza como algo imprescindível à melhoria do meio ambiente pareça consensual, há que se pensar mais detidamente acerca das pessoas que formam os contingentes de despossuídos nos arredores dos grandes centros urbanos, pois não se trata de uma massa sem rosto.

Foi-se o tempo em que reduzir a exclusão social às classes econômicas respondia às inquietações de grandes parcelas da sociedade brasileira. A atual conjuntura também dá indícios de que o país finalmente inicia um processo de construção democrática da perspectiva da alteridade racial e de gênero. Talvez a referência mais concreta a esse respeito se consubstancie nas políticas públicas focadas nas diferenças, as quais denominamos ações afirmativas.

Paulatinamente a nação vai compreendendo que classe social não é categoria absoluta e tampouco responde sozinha pelas mazelas da humanidade. Assim sendo, pensar a questão ambiental hoje exige que percebamos também os vínculos estabelecidos entre ela e determinados problemas que constam na pauta nacional, sem os quais limitaremos sobremaneira nossas possibilidades de encontrar soluções.

De acordo com esse entendimento, gostaria de destacar o conceito, ainda pouco usual, chamado de racismo ambiental, posto que ele é de extrema valia para os novos olhares em torno da exclusão social. A compreensão de seu conteúdo pelo conjunto da sociedade ainda é precária. No que concerne ao contexto urbano, entende-se por racismo ambiental todo o processo de alijamento de populações para áreas periféricas, sem saneamento básico e, portanto, insalubres, nas quais os riscos de adquirir doenças e ter reduzida a expectativa de vida são inevitáveis. Ocorre que as pessoas que integram tais contingentes não são seres abstratos; elas possuem características fenotípicas que evidenciam seus pertencimentos a segmentos étnico-raciais, cujas identidades culturais também não devem ser subestimadas.

Olhar a pobreza de maneira homogênea sem querer identificar aqueles que são os alvos preferenciais da exclusão é tangenciar o debate sobre a natureza do racismo produzido neste país. Tal fenômeno não atua apenas no campo do simbólico, mas afeta as relações entre as pessoas de várias origens, na medida em que hierarquiza as variações comuns entre seres humanos.

Quando defendemos uma vida melhor para o planeta, podemos denunciar os efeitos mais danosos do aquecimento global, podemos criticar o triunfo do capital sobre a chamada economia verde, enfim, contestações não faltam. Todavia, se não prestarmos atenção no local e nas necessidades humanas mais emergentes que estão diante de nós, o discurso ecologicamente correto não terá a eficácia necessária. Além disso, a saúde do planeta depende da saúde daqueles que nele vivem.

Se o desmatamento das florestas não pode ser visto de forma natural, a presença maciça de afro-brasileiros, por exemplo, nos bolsões de miséria também não. A questão ambiental está inexoravelmente ligada às questões sociais. É nesse sentido que o debate sobre racismo ambiental e as demandas das coletividades por ele atingidas se tornou algo fundamental para a formação de uma consciência ecológica crítica que pense as condições humanas, considerando a sua diversidade, articuladas às urgências ambientais.

A discussão sobre racismo ambiental explicita o desmazelo com as periferias urbanas, bem como a ocupação ilícita das reservas indígenas e das terras quilombolas, denuncia a situação-limite de populações ribeirinhas, entre outros propósitos. A partir desta provocação, é possível compreender que segregação étnico-racial e segregação espacial andam a par e passo. E é justamente por esse motivo que o debate ora proposto se tornou impostergável.

* Nelson Inocêncio é professor da Universidade de Brasília e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam/UnB). Ex-secretário da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).

Artigo publicado originalmente na edição nº 1 da revista ECO Brasília.

Fonte: Instituto Ethos

+ sobre o tema

Deputada Leci Brandão Propõe a criação da Semana Estadual do Hip-Hop

    De acordo com o Projeto de Lei 306/2012 ,...

Câmara realiza homenagem ao Professor Eduardo de Oliveira

Sessão solene realizada em comemoração aos 86 anos do...

Ministra da igualdade racial participa de caminhada contra intolerância religiosa no Rio

Mobilização reuniu no domingo (16), milhares de candomblecistas, católicos,...

para lembrar

Após sofrer racismo na escola, Kheris Rogers de 10 anos cria linha de roupas empoderadora

Você precisa conhecer Kheris Rogers, uma menina de 10...

A Discriminação de Boris Casoy: Isso é uma vergonha

Neste vídeo o apresentador da Band, Boris Casoy declara...

RACISMO NA ITÁLIA: Mais um capítulo do racismo na Itália

O prefeito de Brescia, Adriano Paroli, do PDL, informou...
spot_imgspot_img

Quanto custa a dignidade humana de vítimas em casos de racismo?

Quanto custa a dignidade de uma pessoa? E se essa pessoa for uma mulher jovem? E se for uma mulher idosa com 85 anos...

Unicamp abre grupo de trabalho para criar serviço de acolher e tratar sobre denúncias de racismo

A Unicamp abriu um grupo de trabalho que será responsável por criar um serviço para acolher e fazer tratativas institucionais sobre denúncias de racismo. A equipe...

Peraí, meu rei! Antirracismo também tem limite.

Vídeos de um comediante branco que fortalecem o desvalor humano e o achincalhamento da dignidade de pessoas historicamente discriminadas, violentadas e mortas, foram suspensos...
-+=