Racismo é burrice: Entrevista da professora doutora Cândida Soares

por Rose Domingues

A música do cantor Gabriel Pensador ilustra bem o clima da entrevista da professora doutora Cândida Soares, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (Nepre) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Sensível, gentil e muito combativa, ela não perdeu a oportunidade de rebater uma pergunta com outra pergunta: qual o problema com o meu cabelo? Por que preciso alisar? Ao eleger um padrão de beleza, a mídia diz que o resto é feio, o que é extremamente perverso, pois faz com que muitas crianças e adolescentes desejem ser outra pessoa. Cândida pesquisou livros didáticos no período de 1991 a 2003 e descobriu que o racismo tem sido repassado de geração a outra a partir de mensagens explícitas de que a população negra é inferior. “Nessas condições, como uma criança branca, ao lado da negra, vai realmente compreender que a negra é igual a ela, uma amiga, e não sua futura empregada?”. Se por um lado o racismo está escancarado nos livros, por outro, está implícito em piadas, comentários e apelidos. “Basta observar os indicadores sociais para comprovar que as desigualdades sociais no país têm origem racial, o assunto tem que ser discutido, refletido e resolvido”.

“É uma burrice coletiva sem explicação/ Afinal, que justificativa você me dá para um povo que precisa de união/ Mas demonstra claramente/ Infelizmente/ Preconceitos mil/ De naturezas diferentes (…)”

Única – Qual o significado do Dia da Consciência Negra?

Cândida – Simbolicamente celebramos a morte de Zumbi, um dos ícones na luta pelo fim da escravidão no Brasil. É um momento de reflexão e de luta, já que ainda temos hoje muitas desigualdades sociais e o racismo é a base delas. A data lembra que somos um país construído por participação de povos diferentes, dentre eles, inicialmente os negros trazidos da África e hoje os brasileiros, descendentes dos africanos. Lembrar que todos nós temos direitos e que eles devem ser estendidos a todos que contribuem para a consolidação da nação.

Única – Onze estados, cerca de 260 cidades e três capitais aderem o feriado (Cuiabá, Rio de Janeiro e São Paulo), mas recentemente Mato Grosso do Sul derrubou a data, qual sua opinião a respeito?

Cândida – É uma tentativa clara de banalizar a data. A escravidão foi um sistema de produção importante. Reconhecer que o racismo produz desigualdades é reconhecer e reparar muitas injustiças cometidas, também cria uma condição nova com a qual a população brasileira se relacione, em que o acesso ao direito seja garantido realmente a todos.

Única – Integrantes do movimento negro pontuam que ‘luta pela liberdade dos negros brasileiros jamais cessou’…

Cândida – Sim, porque há uma discussão no sentido de que o problema da sociedade brasileira é uma questão de classe e não do racismo operando. A vivência prática mostra que o negro é discriminado mesmo quando conquista condição socioeconômica melhor. Isso acontece porque ele é uma das estruturas das desigualdades sociais.

“Alguns pesquisadores dizem que o racismo foi uma das armas mais eficientes do imperialismo, e que por isso, a ideologia de dominação acompanha a história da humanidade”

Única – Como surgiu o racismo?

Cândida – Do encontro entre pessoas diferentes e no estabelecimento de relações de poder entre elas. Nos séculos 15 e 16, os discursos de que havia pessoas ‘superiores e inferiores’ era frequente. A partir do século 18, com o advento das ciências sociais e biológicas, tais discursos passaram a ser tratados como teorias científicas e determinismos geográficos. Havia a teoria, por exemplo, de que determinados países, como o Brasil, por estarem na região dos trópicos, não teriam sucesso e que em 200 anos desapareceriam. Também havia a ideia de que quanto mais clara a pele, a cor dos olhos e o cabelo, mais superior a raça seria. Alguns pesquisadores dizem que o racismo foi uma das armas mais eficientes do imperialismo, e que por isso, a ideologia de dominação acompanha a história da humanidade.

Única – Qual a diferença entre as escravidões ao longo da história?

Cândida – A escravidão antiga era uma relação de poder, mas que não determinava o lugar definitivo, então se um povo ‘X’ entrava em disputa com ‘Y’, se ‘X’ perdia, noutra ocasião poderia reverter a situação no processo de luta e negociação. Pela disputa um era superior ao outro, não por determinadas características físicas e biológicas. Mas isso não é o que acontece com homens e mulheres negros. Ainda existe uma hierarquia estabelecida que situe negro numa condição inferior, como se fosse naturalmente inferior.

Única – O racismo é um processo consciente? Normalmente os brasileiros não admitem que são racistas.

Cândida – Sim, na maioria das vezes é praticado de maneira consciente. Um selecionador de pessoas em uma empresa, por exemplo, busca um funcionário com determinados traços. Em geral, quem vai ficar à frente atendendo os clientes é, historicamente, branco. Entre uma moça negra e outra branca com as mesmas qualificações dificilmente a negra é escolhida. Claro que nem todos ‘declaram’, mas as decisões são obtidas com base nesses critérios, cor, cabelo, especialmente quando os candidatos têm características diferentes.

tais e o racismoA atriz Taís Araújo foi uma protagonista negra, mas infelizmente o autor a colocou em uma condição subalterna, há uma cena inclusive em que ela se ajoelha, pede perdão e ainda leva um tapa no rosto. Foi doloroso ver aquilo

Única – Hoje todas as pessoas buscam alisar o cabelo, em que consiste este fenômeno? Isso é saudável?

Cândida – São produtos que têm como objetivo descaracterizar a mulher negra. Todos são formas de dizer: ‘Você precisa mudar seu perfil para melhor’. E este melhor significa ‘liso’. Para uma criança é doloroso ser preterida com base no tipo de cabelo. A mídia tem culpa nisso porque só apresenta um perfil, com raras exceções. Quando os negros aparecem estão na condição subalterna. Tudo isso faz com que a criança não tenha elemento de referência, pois tudo que a constitui parece ruim. A atriz Taís Araújo foi uma protagonista negra, mas infelizmente o autor a colocou em uma condição subalterna, há uma cena inclusive em que ela se ajoelha, pede perdão e ainda leva um tapa no rosto. Foi doloroso ver aquilo, um desserviço.

Única – Baseada nessa falta de negros na mídia há uma proposta de cotas para negros na publicidade, acredita que isso possa ajudar?

Cândida – Sim, todas as iniciativas em conjunto podem nos fazer refletir e mudar. Porque, ao eleger um padrão de beleza – e a mídia faz isso, o resto é feio, e isso é perverso, faz com que muitas crianças não queiram ser elas mesmas e sim o outro. O que tem a ver o meu cabelo? Por que não posso mantê-lo como é? Por que preciso alisar? Oras, de que perfeição estamos falando? Houve época em que a beleza da mulher era ser corpulenta!

Única – Alguns historiadores falaram no século passado do branqueamento da sociedade brasileira, o que significa?

Cândida – Havia intelectuais que definiam 100 anos para que nossa sociedade se tornasse absolutamente branca. Em 1911, o diretor do Museu Nacional fez uma previsão de que em 2012 não haveria negros no Brasil, então, o que é isso? Um processo de extermínio simbólico do negro, além do material. Quando você vê criança de 9 anos querendo se tornar outra pessoa ao alisar o cabelo é tudo isso que pesa sobre ela. Com certeza na escola o tratamento das colegas brancas é diferente. Nas relações sociais, existe uma perspectiva do belo que massacra, mata, alija e retira os negros dos espaços sociais.

“Até bem pouco tempo os livros didáticos traziam informações sob uma perspectiva racial em que negro é tratado como um ser inferior”

Única – A violência simbólica é mais difícil de combater, correto?

Cândida – Ouço muita gente dizer: ‘Hoje só não estuda quem não quer’. Mas a juventude negra está sendo massacrada, observe, as escolas menos aparelhadas são as públicas, onde há maior presença de negros. Esses jovens saem do Ensino Médio, fazem curso técnico e acham que conseguirão emprego prontamente. Mas nem sempre isso acontece. Existem programas sociais, mas não é para todo mundo. No contraponto, os indicadores sociais mostram maior mortalidade de parturientes do sexo negro, o mesmo acontece com a mortalidade infantil, acesso à saúde e à oportunidade de emprego e renda. Na contrapartida, os rapazes negros são os que mais morrem por morte violenta. Para compreender o racismo é preciso olhar para vários lados, sob novas perspectivas.

Única – A Universidade Federal de Mato Grosso aprovou recentemente cota para negros, a iniciativa é um avanço?

Cândida – Foram muitos anos de luta para obter a aprovação das cotas (para estudantes pobres oriundos de escolas pública e também para estudantes negros oriundos de escolas públicas). É um avanço, é maravilhoso! Mas ainda temos que aguardar os dados para verificar se essa agregação da questão racial à social acabará com a subalternização. Temos que ver se os negros terão espaço nos cursos mais concorridos, como Medicina, Direito, Engenharias…

Única – Mas muitas pessoas discordam das cotas dizendo que promovem privilégios e pioram a Educação sem resolver os problemas na raiz.

Cândida – Como assim, privilégio? Em 2006, a Andifes fez um estudo nas universidades públicas e comprovou que pouco mais de 2% dos alunos de classe A são negros. Outro censo étnico-racial realizado em 2003, em uma parceria entre UFMT e Universidade Federal Fluminense, apontou que a quantidade de negros em cursos de licenciatura é razoável, porém nos demais eles desaparecem, em alguns, havia apenas 1% de negros, em outros apenas ‘um jovem negro’. Sinceramente, estas são questões que a sociedade brasileira deve discutir, afinal, será que os jovens negros não querem ser médicos, advogados, engenheiros, jornalistas, arquitetos?

cotasEleger um padrão de beleza é perverso porque faz com que muitas crianças não queiram ser elas mesmas e sim o outro. O que tem a ver o meu cabelo? Por que não posso mantê-lo como é? Por que preciso alisar?

Única – A cota resolve o problema da discriminação?

Cândida – Ela não dá conta sozinha. É um instrumento que pode ser utilizado no sentido de reverter essa situação de iniquidade no nosso país. Hoje nós falamos em cotas para negros, mas se utilizarmos os dados de matriculados nas universidades, na UFMT, por exemplo, existem cursos que têm 100% dos seus alunos declaradamente brancos ou 80% de alunos brancos. Existe uma cota para branco? Li uma frase outro dia que me cativou muito: ‘A sorte é filha da preparação e da oportunidade’. O negro pode ter todo preparo, mas ele precisa também de oportunidade. Diversas instituições de ensino que instalaram as cotas comprovam que os alunos têm resultados até superiores aos não-cotistas, portanto, não é a falta de inteligência que impede esse tipo de política pública.

Única – O racismo é uma ideologia que passa de uma geração a outra, a partir de que instrumento é possível comprovar isso abertamente?

Cândida – Até bem pouco tempo os livros didáticos traziam informações sob uma perspectiva racial em que negro é tratado como ‘ser inferior’. Eu estudei livros do PNLD (Plano Nacional de Livro Didático) de 2001 e de 1991. Em 91, havia texto falando abertamente e de forma depreciativa do negro. Já em 2003, em livros de 2001, 2002 e 2003, observei a mesma linguagem só que mais refinada. Porém a criança lê e compreende a mensagem.

Única – Quais os tipos de mensagens trazidas nos livros didáticos?

Cândida – Lembro-me de uma charge em que aparece uma criança com característica branca, bem vestida e arrumada, e ao lado a figura de um menino negro, descalço, boné virado para trás, camiseta rasgada. O balãozinho para menino branco dizia: ‘Eu ganhei um montão de presentes pelo dia da criança, e você?’. No balão do menino negro, que está com um estilingue apontado para o branco, dizia: ‘O meu vai chegar agora, pode passar o tênis!’. Quando eu li me perguntei: ‘Meu Deus, que mensagem é essa? Que lição estamos ensinando?’. Nessas condições, como uma criança vai se orgulhar de ser negra? Como a criança branca, ao lado da negra, vai realmente compreender que a negra é igual a ela, uma amiga, e não sua futura empregada?

“Na UFMT existem cursos que têm 100% dos seus alunos declaradamente brancos. Existe uma cota para branco? Será que jovens negros não querem ser médicos, advogados ou engenheiros?”

Única – Os professores estão preparados para trabalhar cultura e história africana nas escolas?

Cândida – O curso de pedagogia da UFMT já traz uma disciplina para tratar do assunto, no curso de Enfermagem e de Letras também, o que é um avanço, mas falta uma política pública mais estruturada do governo federal para não deixar isso nas costas do professor. É preciso exigir que essas questões reflitam na organização do trabalho escolar, no projeto político-pedagógico, nos recursos que chegam à escola e nos livros paradidáticos também. Quando o imaginário social racista foi construído usou o aparelho educacional, então ele tem que estar nesse contexto para desconstruir o modelo antigo e construir um novo que contemple todos os segmentos.

Única – Não há como negar a dívida do Brasil com os negros…

Cândida – Sim, foram eles que construíram o país. Quem trabalhava e produzia todas as riquezas até o final do século 19 eram eles. Até hoje o Brasil se sustenta a partir dessa riqueza, no entanto, a população negra está fora do trabalho formal. E é um processo de desigualdade que deve ser desconstruído e que não acontece de uma vez só. A educação tem papel importante. A imprensa também. Estudos apontam que debates sobre educação apresentam falas de que determinados segmentos não teriam o ‘dom’ para estudar ou ter escolarização avançada, desde quando cor da pele ou textura do cabelo determina a competência?

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