‘Racismo em português é a ilusão de um não racismo’, diz autora portuguesa

Joana Gorjão Henriques, jornalista portuguesa, é destaque de festival literário que acontece no Teatro Eva Herz

Por Laura Fernandes, do CORREIO 24 HORAS

A jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques participa, no sábado (11), da mesa Racismo da Realidade à Ficção: uma perspectiva feminina (Foto: Ricardo Maneira/Divulgação)

“‘Racismo em português’ é a ilusão de um não racismo e de que racistas são os outros”, denuncia a jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques, 42 anos. Autora do livro Racismo em Português: o lado esquecido do colonialismo (editora Tina da China), Joana é uma das atrações de destaque do Festival Minha Língua, Minha Pátria, que acontece de sexta (10) a domingo (12), no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura, no Salvador Shopping.

Autora de reportagens que abordam direitos humanos e discriminação, Joana escreve para o jornal português Público, para o inglês The Guardian e para o site americano The Root. Em entrevista ao CORREIO, a jornalista critica o sistema colonial português e a “democracia racial”, defende a urgência de “descolonizar a mentalidade ocidental” e fala sobre o racismo, “um sistema, uma ideologia e uma prática que tem na base relações de poder”. Confira.

Seu trabalho contribui com o debate sobre o sistema colonial de Portugal. Em que momento você, uma jornalista portuguesa, decidiu enfrentar esse pensamento dominante?
Os debates sobre a desconstrução do colonialismo e da visão “bondosa” do que foi o sistema colonial português são antigos em alguns círculos da academia portuguesa e em muitos grupos de ativistas anti-racistas e outros movimentos sociais. Ter estudado fora de Portugal e ter tido contato com uma visão crítica forte sobre este período histórico em países como o Reino Unido e os Estados Unidos, na academia, em círculos da sociedade civil e nos media, deu-me outra perspectiva sobre a forma como eu, enquanto jornalista branca, poderia contribuir para este debate em Portugal. Sabemos que o alcance dos media e de um jornal como o Público, onde saíram as reportagens, pode ter. Então em 2015, no ano em que se assinalavam os 40 anos das independências da maior parte dos cinco países africanos colonizados por Portugal (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Moçambique) decidi propor uma série de reportagens que justamente ajudasse a desconstruir mitos tão enraizados na sociedade portuguesa, procurando ouvir e trazer para a centralidade do debate um lado africano da História.

Você ressaltou, em entrevista, que cresceu no contexto que alimentou o mito do “colonialismo brando”. Quais são os perigos que esse conceito apresenta?
Não existe tal coisa chamada de “colonialismo brando”. O colonialismo implicou ocupação e expropriação de terras, tomada de poder, violência exercida de todas as maneiras, físicas e psicológicas, aniquilamento de identidades e culturas, dominação, subjugação, opressão, morte, estupro, racismo, crimes que hoje seriam considerados crimes contra a humanidade. Tal sistema marcado pela desumanidade extrema nunca pode ser brando.

O que as cinco ex-colônias lusitanas visitadas por você, em 2015, têm em comum com o Brasil?
Apesar de o colonialismo português ter especificidades, de ter sido bastante diferente em cada um dos países – e de ter variado consoante os períodos históricos – o país colonizador foi o mesmo. O colonialismo português foi hábil no dividir para reinar, entre colônias e dentro de cada colônia. É muito difícil em poucas palavras explicar o que pergunta, mas de forma simples posso dizer que a mitologia da bondade do projeto colonial originou fenômenos nesses países que parecem ser idênticos. Por exemplo, quando no Brasil se fala numa “democracia racial” esse olhar é marcado pela ideologia luso-tropicalista do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre que enaltecia uma suposta capacidade portuguesa para se miscigenar racialmente, querendo com isso elogiar uma presumível “não discriminação” dos portugueses.

Ora essa miscigenação não produziu uma “democracia racial”, como tão bem se observa nas desigualdades raciais do passado e do presente no Brasil e nos países colonizados em África e em Portugal

É, antes, o sintoma de um pacto de silêncio sobre o racismo do sistema colonial português que vigorou e ainda vigora porque, apesar de não ter existido um apartheid formal, informalmente ele aplicava-se durante o colonialismo de maneira muito clara – e é isso que muitos dos meus entrevistados africanos ressaltam. Outro aspecto a referir é que muita dessa miscigenação não foi feita de forma romântica como tão bem sabemos, foi antes resultado de violência exercida sobre as mulheres. Sabemos ainda que era prática corrente as relações interraciais nas ex-colônias em África não serem oficializadas e ficarem remetidas à clandestinidade. Estes aspectos do passado ainda hoje se refletem no quotidiano das sociedades que visitei. Assim como muitas outras marcas comuns que são descritas no livro.

Como define o “racismo em português”?
Acho que já respondi na pergunta anterior, mas julgo que uma maneira de definir o “racismo em português” é a ilusão de um não racismo e de que racistas são os outros – alimentada por um poderoso pacto de silêncio sobre as atrocidades do colonialismo português.

Você concorda que o racismo ganhou força como uma maneira de legitimar as relações de dominação impostas pela conquista europeia? Por quê?
Os sistemas coloniais, e o português  incluído, usaram a ideologia da hierarquização racial como forma de dominar e de justificar a ocupação de territórios e a subjugação de seres humanos, objectificando-os de modo a legitimarem as atrocidades que cometeram contra seres humanos.

A ideia de que há raças biológicas, e que umas são superiores às outras, foi criada pelos homens brancos para gerar um sistema de privilégios para si próprios, dos quais ainda hoje beneficiamos – como brancos -, mas que temos enorme dificuldade em reconhecer e partilhar

O racismo é um sistema, é uma ideologia e é uma prática que tem na base relações de poder que se reproduzem e perpetuam até hoje e foi isso que tentei mostrar também com a abordagem que fiz na série.

Pensadores apontam que as ciências sociais e as humanidades ensinadas em boa parte das universidades e escolas abrigam uma herança colonial que contribui para reforçar a hegemonia política, cultural e econômica do Ocidente. Qual é sua avaliação sobre isso?
A mentalidade colonialista, em grande parte enformada pela ideologia do racismo, está impregnada na nossa forma de aprender e de olhar o mundo desde o berço – e não me excluo dessa equação. Aprendemos a hierarquizar o conhecimento, tal como fazemos com as pessoas entre brancas e não-brancas, e classificamo-lo baseados na ideia de que aquilo que é ocidental é o farol, descartando todas as outras formas de conhecimento. Em regra, no ensino europeu não há hipótese de colocar em confronto várias formas de pensar que não a ocidental, o que na verdade é um contra-senso pois é do confronto e do contraste que nasce o conhecimento. Isso acontece por causa da forma automática e preconceituosa como quem ensina está habituado a transmitir conhecimento, mas muitas vezes também da sua insegurança em ir procurar novas fontes e versões diferentes do cânone e refletir sobre elas de forma crítica e aberta.

É muito cômodo limitarmo-nos a reproduzir o que nos ensinaram para perpetuar um sistema em que nós, brancos, aparecemos como os heróis e os intelectuais por excelência sem que ninguém nos desafie – mesmo que individualmente não nos demos conta disso, tudo está montado de maneira a manter a estrutura de poder que nós criamos

Diante da elaboração do eurocentrismo como perspectiva hegemônica de conhecimento, por que é importante descolonizar o conhecimento?
Parte dessa resposta está dada na anterior. Sabemos que conhecimento é poder, e portanto o seu controle é uma arma fundamental para mudar as relações de poder na sociedade.  Isto é um clichê, mas é urgente descolonizarmos a mentalidade ocidental e para isso temos que alargar aquilo que investigamos e os autores que citamos, em regra de cultura ocidental e branca. Precisamos exigir mais diversidade aos nossos acadêmicos e a quem produz conhecimento. Obviamente que esta dinâmica se reproduz em todos os outros espaços de poder da sociedade. Na prática, continuamos a funcionar num sistema endogâmico, com os espaços de poder a serem perversamente cooptados pelas pessoas brancas.

Depois de participar da Flip, no Rio de Janeiro, você vem a Salvador para participar do Festival Literário Minha Língua, Minha Pátria, evento que debate a produção literária em língua portuguesa. Como será sua participação?
Pretendo ir aberta a questões, centrando-me no tema do debate, o racismo, como jornalista portuguesa e como alguém que acha importante, com o seu trabalho, fazer o questionamento do lugar de privilégio que ocupamos, mas é importante também pensar em formas da sociedade corrigir essas injustiças. Não chega reconhecer o privilégio, é preciso encontrar maneiras concretas de o partilhar.

Qual é sua relação com a Bahia e qual é sua expectativa em relação a essa visita a Salvador?
Estive em Salvador de férias e mais recentemente em 2014 fazendo uma reportagem sobre racismo no Brasil. De facto foi lá que encontrei alguns dos entrevistados mais importantes para essa reportagem, como a médica Ariana Reis, que terminou sua formatura dizendo “Sou mulher, sou negra, sou da favela e hoje sou médica” ou a historiadora Wlamyra Albuquerque, que com enorme paciência fez comigo um percurso pelas diferenças raciais no Brasil através da festa de Iemanjá.

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