“Racismo impacta na tomada de decisão dos magistrados”

Pesquisador Felipe Freitas alerta sobre os efeitos do racismo institucional do Judiciário

Por Mariana Muniz Do Vermelho

O racismo impacta nos filtros subjetivos de tomada de decisão dos magistrados e produz uma taxa maior de encarceramento e de condenação judicial de pessoas negras em relação às pessoas brancas. É o que afirma o pesquisador Felipe da Silva Freitas, mestre e doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

Em entrevista ao JOTA, Freitas falou sobre o racismo presente no Judiciário brasileiro – um racismo estrutural, produto de uma realidade maior, vivida na sociedade.

“As pesquisas sobre vitimização, assim como os dados sobre formas de condenação judicial e sobre o perfil da população carcerária, demonstram como as pessoas negras procuram as instituições policias para notificar fatos violentos em índices inferiores aos das pessoas brancas”, afirmou. Segundo ele, também são menores as taxas de confiança das pessoas negras em relação ao sistema de justiça. “A população negra sabe, pela experiência concreta, que são reais as barreiras que interditam seu acesso à justiça. ”

Membro dos grupos de pesquisa Desigualdades, Desrespeito e Discriminação da PUC do Rio de Janeiro e Política Criminal da UnB, atualmente ele investiga o papel do Ministério Público na apuração dos casos de morte decorrentes de intervenção policial. Trabalhou junto à Rede Justiça Criminal e ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), prestando consultoria nas áreas de estatísticas criminais, juventude, relações raciais e execução penal.

“Sempre me interessei pelos temas da segurança pública e por isso estruturei tanto a minha reflexão acadêmica quanto a minha ação política neste campo, por entender a relevância desta questão para a democracia brasileira e para o enfrentamento aos efeitos do racismo”, contou. Foi assim que, segundo ele, se aproximou cada vez mais do problema da violência policial. Uma questão “que é responsável não só por uma série de ocorrências letais no país como também é indicativo do baixo grande democratização das nossas instituições”.

Entre 2013 e 2016 trabalhou na Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, quando foi coordenador do Plano Nacional de Prevenção a Violência contra Juventude Negra (2012 – 2014) e secretário executivo do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (2015).

Freitas observa que ao longo de quase 30 anos de criminalização do racismo, o que se tem observado é que a forma de tratamento destas ocorrências no âmbito do sistema de justiça é revitimizante, ineficaz e imprecisa. “Há uma tolerância generalizada com a discriminação racial e o sistema de justiça é espaço de reprodução destas práticas”.

Leia, na íntegra, a entrevista que o pesquisador concedeu ao JOTA:

– Podemos falar num racismo institucional no nosso sistema Judiciário? Quais são os efeitos sociais desse racismo institucional?

O racismo é um fenômeno estrutural e sistêmico, portanto, um fenômeno que também influi na forma de funcionamento das instituições, nos seus códigos e nas suas formas de distribuição do poder. Assim, o Judiciário – como parte da sociedade – é, também ele, organizado pelos códigos do racismo que chamamos de racismo institucional.

Este fenômeno tem como principal efeito a alteração do nosso sentido de humanidade e, por consequência, a destruição do conceito de cidadania. O racismo subverte nossa noção de quem é humano em nossa sociedade e a principal decorrência disto é que toda a ideia de igualdade, equidade e justiça ficam irrevogavelmente comprometidas. Se o racismo fez dos negros cidadãos de segunda classe e impediu o acesso de pessoas negras aos espaços de poder, ele também criou mecanismos objetivos e simbólicos que constroem e alimentam desigualdades econômicas, culturais, políticas e sociais.

O principal efeito social disso tudo é que a democracia e o direito ficam interditados enquanto se fala em racismo. Uma sociedade não pode ser definida como uma sociedade democrática enquanto critérios raciais seguem orientando quem pode e não pode viver nesta determinada sociedade, uma sociedade racista é, por definição, uma sociedade violenta e antidemocrática. Este é o caso da sociedade brasileira.

– Esse fenômeno também é responsável pela limitação do acesso à justiça para a população não branca?

Os dados de que dispomos não deixam qualquer dúvida em demonstrar que as pessoas negras têm menos acesso à justiça (bem como a outros serviços públicos). Desde o primeiro atendimento referente à prestação jurisdicional até a litigância nos tribunais superiores os negros são, sem dúvidas, limitados por barreiras decorrentes do seu pertencimento racial.

As pesquisas realizadas nos últimos anos sobre vitimização, sobre composição das carreiras jurídicas e sobre perfil das pessoas condenadas e absolvidas pelo sistema de justiça criminal são fartas em demonstrações de como a identidade racial das pessoas é bastante influente na estruturação do tipo de trajetória que esta pessoa terá no que diz respeito ao acesso à justiça no país.

Para se ter uma ideia de como a raça importa em termos de maior ou menor chance de acessar um julgamento justo no Brasil podemos pensar no caso recente das audiências de custódia na cidade de São Paulo nas quais, segundo estudo realizado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), 69% das pessoas negras levadas à audiência tiveram a prisão preventiva decretada enquanto entre as pessoas brancas este número não ultrapassava os 55%.

Outro dado eloquente é a composição da população carcerária brasileira. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) os negros formam a maioria da nossa população carcerária, correspondendo a percentuais superiores à participação das pessoas negras no universo da população do país.

Ou seja, é o racismo que impacta nos filtros subjetivos de tomada de decisão dos magistrados importando, portanto, em uma maior taxa de encarceramento e de condenação judicial de pessoas negras em relação às pessoas brancas.

As pesquisas sobre vitimização, assim como os dados sobre formas de condenação judicial e sobre o perfil da população carcerária, são eloquentes em demonstrar como as pessoas negras procuram as instituições policias para notificar fatos violentos em índices inferiores aos das pessoas brancas bem como são menores as taxas de confiança das pessoas negras em relação ao sistema de justiça.

A população negra sabe, pela experiência concreta, que são reais as barreiras que interditam seu acesso à justiça;

– Como você avalia os efeitos da criminalização do racismo desde o advento da Lei Caó, em 1989?

Primeiro me parece bastante oportuno frisar que a criminalização do racismo é apenas uma das inúmeras demandas políticas formuladas pelo movimento negro no âmbito da luta por direitos, e, portanto, é apenas um dos muitos instrumentos possíveis para se buscar incidir sobre o fenômeno da violência racial e para superá-lo. Digo isso para que não reste dúvidas de que as medidas penais, apesar do seu importante caráter simbólico, não terão o poder de incidir eficazmente sobre problemas complexos como o racismo e a discriminação racial.

No entanto, ainda que se destaque o caráter limitado do direito penal como forma de intervenção nos casos em que se verifica a prática de discriminação racial (crime de racismo) também é preciso falar que, por outro lado, sequer neste ponto foi possível para os negros brasileiros contar com o apoio e a proteção do Estado brasileiro.

Ao longo destes quase 30 anos de criminalização do racismo o que se tem observado é que a forma de tratamento destas ocorrências no âmbito do sistema de justiça é revitimizante, ineficaz e imprecisa. Os casos de racismo são amplamente reclassificados como casos de injuria racial ou injuria simples, e, ainda assim, são baixíssimas as taxas de elucidação dos casos e de condenação dos culpados.

Em pesquisa recente realizada sobre o tema a professora Gislene dos Santos observou como os discursos do Judiciário nos processos judiciais referentes ao crime de racismo são marcados pela absolvição dos acusados de racismo, e, por outro lado, pelo reforço a uma narrativa despolitizante sobre a sociedade brasileira ratificando as crenças e mitos relativos à suposta harmonia racial do país.

Na mesma direção o estudo de doutorado de Thula Pires, professora de direito constitucional da PUC do Rio de Janeiro, aponta para os limites da criminalização do racismo, mas, ao mesmo tempo, adverte quanto aos modos racistas pelos quais o dispositivo legal vem sendo interpretado pelo Judiciário brasileiro. Há uma tolerância generalizada com a discriminação racial e o sistema de justiça é espaço de reprodução destas práticas.

– O Judiciário tem dificuldade em lidar, acolher e suprir as demandas movidas contra condutas racistas?

Há uma evidente má vontade do Poder Judiciário – e dos outros órgãos do sistema de justiça – em tratar das demandas apresentadas pelos movimentos antirracismo. Assim como as pessoas negras são vistas como não humanos (e, portanto, como sujeitos de segunda classe ou como sujeitos desprovidos de direitos) o racismo no país também é tratado como um “problema menor” e isso logicamente contribui – muito – para a perpetuação de práticas violentas e discriminatórias.

– Você acredita que a falta de operadores do direito negros – pouquíssimos juízes negros, desembargadores, um STF monocromático desde a saída de Joaquim Barbosa – influencia para que nós continuemos assistindo (e vivendo) a um massacre constante da juventude negra?

O censo do Poder Judiciário, publicado pelo CNJ em junho de 2014 destaca que apenas 1,4 % dos juízes se autodeclaram pretos e 14,2%, pardos e que 64,1% dos juízes brasileiros são homens e 82,8%, brancos. Nos tribunais superiores não chega a 10% o número de negros.

Estas informações já haviam sido identificadas em Pesquisa do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER), de 2014, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Segundo o estudo, pardos e pretos correspondem a apenas 22,7% dos juristas e advogados do funcionalismo público.

O trabalho intitulado Ministério Público: guardião da democracia brasileira? – lançado este mês pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania segue também na mesma direção e aponta o grave problema de sub-representação dos negros nas carreiras jurídicas. A pesquisa realizada para traçar o perfil dos promotores e procuradores brasileiros mostra que o número de negros no Ministério Público brasileiro corresponde apenas a cerca de 22%, ou seja, o mesmo número apontado em 2014 pelo LAESER em outra pesquisa realizada sobre a matéria.

É um cenário aterrador tanto pelo que isso representa em termos de obstáculos para o acesso de pessoas negras a espaço de poder quanto em termos de construção da subjetividade de pessoas negras. Se um jovem negro não consegue localizar na sua experiência concreta outras pessoas parecidas com ele ocupando espaços de decisão é muito improvável que este jovem consiga reunir as condições subjetivas necessárias para construir um caminho em direção a estes espaços. A representatividade neste caso é decisiva na construção das trajetórias políticas e profissionais.

Neste sentido, não temos como negar que a baixa quantidade de pessoas negras ocupando cargos importantes no mundo jurídico tem efeitos muito danosos para a vida da comunidade negra. Ao mesmo tempo, a hegemonia branca nos espaços de decisão do poder judiciário (e do mundo jurídico como um todo) contribui sim para que os direitos da população negra deixem de ser observados.

Na medida em que as pessoas negras estão afastadas dos espaços jurídicos este universo passa a ser apenas um espaço de reprodução de privilégios e vantagens sociais e não um espaço de afirmação de outros valores. Na medida em que os órgãos do sistema de justiça são monopolizados por pessoas brancas diminuem as chances de que decisões de combate ao racismo e a desigualdade racial sejam tomadas. Não podemos esquecer que o racismo é um sistema que ao lado de criar desvantagens para as pessoas negras também vai criando vantagens para as pessoas brancas, é o que chamamos de privilégios da branquitude.

Neste sentido são cada vez mais relevantes medidas políticas afirmativas que busquem alterar esta realidade como reserva de vagas para negros nos concursos, apoio à criação de comissões de negros nos órgãos de classe e fomento às pesquisas jurídicas feitas por pessoas negras voltadas à identificação e ao combate ao racismo institucional.

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