Rap do Direito à Cidade: ‘A gente sabe que a Cidade tem lado’

Enviado por / FontePor Michelle Moari

Tem algo sobre essa coluna que talvez pouca gente saiba: antes de cada texto chegar ao público, ele passa por um processo de cuidado coletivo. Um grupo de cuidadores lê, comenta e troca impressões com as autoras. Não se trata de revisar o texto, mas de construir um espaço de escuta, afeto e crítica, onde a escrita encontra suas primeiras leitoras e pode respirar antes de ganhar o mundo.

Uma das cuidadoras deste ano é Adriana Lima, mulher nordestina, professora de Direito Urbanístico na Universidade Estadual de Feira de Santana e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia. Em uma das conversas, Adriana compartilhou que aqueles encontros estavam lhe despertando a lembrança de um texto que a marcou: o Rap do Direito à Cidade, escrito por uma de suas alunas no projeto de extensão Núcleo de Prática Jurídica.

A autora do rap é Michelle Moari, que se juntou a nós algumas semanas depois. Michelle falou sobre sua aposta na educação popular, na música e na cultura como ferramentas de diálogo e luta. Trouxe com ela a inteligência e sagacidade de quem transforma vivência em linguagem.  E linguagem em movimento.

Rap do Direito à Cidade

“Imagine um direito
Que vem dos povos,
vem dos guetos
É para o pardo,
é para os pretos
Faz surgir a esperança ao invés do medo
Parece devaneio,
Andar na rua sem ter receio
Ser cidadão antes de ser suspeito
Não ser abordado por causa do lugar que veio,
da roupa que veste, do formato do cabelo
Um Direito, também, das vielas e dos becos
Cada corpo tendo o direito
De não apenas existir de qualquer jeito
Ser sujeito não só na Carta de Direitos
Mais quartos de oportunidades ao invés de quartos de despejos
Lugares auto construídos, pelas lágrimas e lutas
Dos invisibilizados, despossuídos,
O Direito à Cidade desse povo sofrido,
A mãe tendo um teto para dispor ao seu filho,
Sem o capital ditando o preço que a terra tem,
Ou a terra é de todos, ou não devia ser de ninguém
O ambulante nos centros tendo vez e tendo voz,
Podendo levar o pão, tendo consideração,
daqueles que dizem trabalhar por nós.
Um Direito que é mais do que norma,
mais do que juridiquês, mais do que toga
Na cidade que congrega
Não segrega, não explora
De baixo para cima, refazendo a própria história
A gente “tá” aqui
Porque muitos vieram antes
Deram tudo, deram sangue
Por esse ideal de igualdade
Pra não existir nessa cidade
Quem morra
Quem mate
Todo mundo no mesmo mar
Mas não no mesmo barco
Em Alphaville não tem esculacho
E não é para ter
Nem com eles nem com os favelados
A gente sabe que a Cidade tem lados
Que a lei olhe, então, pra quem tá em baixo
Quando sonhos viram palavras
Eles mandam recados
Eu tenho um sonho, tal qual o irmão King
Eles infligem pesadelos em nós
Mas nossos corpos e mentes resistem
Existem e são firmes
Porque quando a cidade que a gente quer
pra viver não existe
Nós vamos no pique
A gente já criou o impossível por estar vivo
Sem ser da elite
O jovem da quebrada é imbatível
Sem terra, sem renda, sem lazer, sem transporte
A gente floresce até no asfalto
Ocupamos a cota
O patrão indignado
O filho da Marileide na mesma sala do Gustavo?
Dessa vez não vai ter golpe
Nós faremos a cidade
Nós faremos nossa sorte
Sem futuro é o sistema
Nós somos o fogo que queima
É da rua que vem o esquema
Não existe mais dilema: liberdade ou morte
Morte “pra” desigualdade. Apenas.

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