“Reclamar do politicamente correto é desculpa de quem continua propagando injustiças”, diz representante da ONU Mulheres

Em entrevista à Marie Claire, a carioca Kenia Maria, de 41 anos, nomeada a primeira Defensora dos Direitos das Mulheres Negras da ONU Mulheres, fala sobre o racismo e o machismo que fazem milhões de vítimas em nosso país

 

POR DANIELA CARASCO, do Marie Claire

 

Kenia Maria foi nomeada a primeira Defensora dos Direitos das Mulheres Negras da ONU Mulheres (Foto: Serendipity)

Atriz, escritora, YouTuber, mãe de santo, militante feminista… A lista de predicados associados a Kenia Maria, 41, é longa e acaba de ganhar mais um importante título. A carioca de Del Castilho, subúrbio do Rio de Janeiro, foi nomeada pela ONU Mulheres do Brasil a primeira Defensora dos Direitos das Mulheres Negras, no mundo. “O nosso pedido é muito simples: que a sociedade nos trate como humanas”, disse em seu primeiro pronunciamento como defensora.

Criada em uma família liderada por mulheres empoderadas, ela começou sua militância muito cedo. Quando jovem, por meio da dança africana, promovia o resgate da ancestralidade e empoderava meninas nas comunidades cariocas. A criação sem distinção de gênero foi transferida também aos filhos, Matheus, 20, e Gabriela, 18, que dentro de casa desempenham as mesmas tarefas, mas nas ruas enfrentam diariamente o racismo de uma sociedade ainda desigual.

Quando o recorte é feito da perspectiva da mulher negra, as estatísticas são alarmantes. Elas já são 55,6 milhões de brasileiras, que chefiam 41,1% das famílias afrodescentes. Porém, ainda recebem 58,2% da renda das mulheres brancas e viram o número de assassinatos aumentar 54%, enquanto o feminicídio de brancas caiu 10%, entre 2003 e 2013. Dos cargos de liderança das maiores empresas brasileiras, elas ocupam apenas 0,4%. “Não tem ninguém nos abrindo as portas”, diz em entrevista à Marie Claire.

Por isso, na nova função, ela quer jogar luz sobre racismo que faz milhões de vítimas no País e aquecer o debate sobre a lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio, mas que ainda não é cumprida.

“Hoje muita gente reclama do politicamente correto, que nada mais é do que uma desculpa para quem quer continuar propagando injustiças. Se está desagradando, agredindo, matando, não tem como ser correto. É inaceitável. Precisamos escrever novas histórias”, acrescenta.

A seguir, ela fala sobre sua trajetória, se emociona ao relembrar ataques racistas e convoca a sociedade para o debate – e avanço -, que precisa levar em consideração a questão racial.

“Hoje muita gente reclama do politicamente correto, que nada mais é do que uma desculpa para quem quer continuar propagando injustiças", diz Kenia Maria (Foto: Serendipity)

MARIE CLAIRE Como foi o convite da ONU Mulheres?
KENIA MARIA
Ele de seu muito por conta da minha história e da minha família. Sou do subúrbio e venho de uma família de militantes, como o capoeirista Mestre Celso. Meu nome é KENIA por causa do país africano e eu participo de projetos sociais desde os meus 13 anos, quando minha mãe me introduziu ao universo da dança no resgate da minha ancestralidade. Eu tenho uma herança espiritual muito grande. Sou mãe de santo, que é uma herança deixada pelo meu avô. Minha militância aumentou aos 18 anos, quando participei da fundação do AfroReggae, em Vigário Geral. Lá precisei lidar com meninas muito machucadas pela extrema violência presente na comunidade. Era um tempo em que não adiantava falar de feminismo e direitos, a gente precisava falar de vida, de sobrevivência no meio de uma guerra. Desde então, nunca parei de lutar. Há quatro anos, criei com meus filhos e marido, o ator Érico Brás, o canal “Tá Bom Pra Você”, no YouTube, onde questionamos a ausência do negro na publicidade. E agora estou prestes a lançar dois livros infantis que tratam da história afro-brasileira.

MC Quando você se deu conta de que estava militando pelas mulheres negras?
KM
Eu nasci militando. Minha mãe, que é pedagoga e feminista, nunca me deixou alisar o cabelo, num país onde a regra é clarear o máximo possível, começando pelos fios. Já senti desde cedo que tinha algo diferente na minha criação. Sempre brinquei com os mesmos brinquedos dos meus irmãos. De carrinho a bonecas, dividíamos tudo. Todo mundo sempre realizou todas as tarefas de casa. E uma das coisas mais importantes: ela nunca nos escondeu o fato de vivermos em um país racista.

MC Como é então para você se tornar a primeira Defensora dos Direitos das Mulheres Negras da ONU Mulheres?
KM
Uma enorme responsabilidade. Não tem como falar de igualdade de gênero no Brasil sem fazer um recorte racial. Quando olho para a iniciativa “Por um planeta 50-50 em 2030: um passo decisivo pela igualdade de gênero”, sempre penso quais mulheres serão de fato atingidas por ela. Em dez anos, o feminicídio das mulheres negras aumentou 54%, mesmo com a existência da Lei Maria da Penha, e o da mulher branca diminuiu 10%. Cerca de 80% das empregadas domésticas brasileiras são negras. Quando vamos poder falar que estamos caminhando juntas pela mesma causa? Nós ainda não estamos em pé de igualdade e toda vez vamos nos posicionar ainda precisamos abaixar o tom e falar de maneira pedagógica. Isso precisa mudar.

MC As feministas negras falam muito do rótulo da mulher negra raivosa que carregam. Você também nota isso?
KM
Vivo isso o tempo todo. Sou a raivosa, mesmo tendo uma voz doce. Já virou um rótulo. Isso vem muito da ideia equivocada que se propaga sobre a mulher negra ser mal amada. Começa desde cedo. Na escola, por exemplo, nunca somos escolhidas para ser a noiva da quadrilha. Depois, o tempo passa, e se torna comum ouvir que não servimos pra casar. É uma rejeição constante. E aí quando abrimos a boca para brigar, ninguém nos ouve. Imagina uma pessoa que nunca teve voz, aquela figura da cozinha, que sempre sorri e ama todo mundo, ou aquela mulher da cama, que está sempre disponível, mas que de repente começa a falar de cidadania. Ela não é bem aceita. Somos sempre vistas com o olhar do colonizador, o olhar racista.

MC Onde é que mais se dá a invisibilidade da mulher negra?
KM
Eu a vejo em todos os lugares. Falta mulher negra nos espaços de poder, na publicidade, na medicina… Mas o que mais me incomoda é a invisibilidade na publicidade e na arte, dois espaços formadores de opinião. É pura estratégia de manutenção de poder. Se eu não posso me expressar artisticamente, não formo opinião e não digo quem eu sou. Deixo de existir perante a sociedade. Mulher negra não faz comercial de absorvente, por que mulher negra não sangra? Mulher negra não faz comercial de margarina, porque ela não merece ter uma família feliz? Mais do que vontade de avançar, existe uma necessidade.

MC Qual é o seu objetivo nesta nova função a fim de mudar esta realidade?
KM
Quero resgatar cada vez mais a ancestralidade das religiões de raízes africanas em nosso País e também fazer valer a lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio, mas que ainda não é cumprida. É preciso levar a representatividade para as crianças. E para isso vou usar muito o poder mobilizador da Internet.

MC Já foi vítima de racismo?
KM
Todo dia. Mas teve um episódio muito marcante e doloroso, e diz respeito ao racismo no atendimento médico. A mulher negra é tratada com diferença dentro dos hospitais e isso se deve a uma herança histórica. [No século 19, o médico norte-americano James Marion Sims, que depois viria a ser conhecido como o “pai da ginecologia” usava escravas negras como cobaia de seus experimentos e descartava o uso de qualquer tipo de anestesia. Desta maneira, ele concluiu de maneira equivocada que a mulher negra era resistente à dor.] Esse é um mito que a gente paga até hoje. Há dois anos, sofri um aborto espontâneo e cheguei ao hospital particular com muita dor na alma, porque esperávamos muito por aquele filho, e física. A médica me olhou e perguntou se, antes de me medicar, poderia me examinar. Segundo ela, eu suportaria. Esse foi o caso de racismo mais forte que já sofri. E hoje já é comprovado que as negras recebem menos anestesia durante o parto, além do tratamento inferior nas consultas.

MC De que maneira sua militância impacta na criação da sua filha?
KM
A Gabriela, tem 18 anos, nasceu na Venezuela, e como lá não existiam leis raciais, ela sofreu muito na escola particular. Sempre foi a única negra. Mas desde sempre eu a orientei como fui orientada, mostrando que essa realidade existe e precisa ser combatida. Ela é super feminista.

MC Ela já enfrentou algum episódio de racismo que te marcou?
KM
Ela é vítima de assédio com muita frequência. Isso é muito doloroso. Nas Olimpíadas do Rio, foi cercada nas ruas de um bairro nobre e negociada por um rapaz, que acompanhava uns estrangeiros. Nervosa, ainda foi obrigada a ouvir de um camelô: ‘Calma, moça, ele só te achou bonita’. E por se irritar e não dar ouvido, ela é sempre desqualificada, ouve muito xingamento. Ela chegou em casa muito transtornada. O racismo nos obriga a carregar uma mala pesada sem alça e rodinha, todos os dias. E no caso da mulher negra são duas, porque ainda carregamos a mala do machismo. Então, é sempre um peso enorme sair de casa.

MC E do seu filho, teve algo muito marcante?
KM
Ele tinha 9 anos e ainda morávamos na Venezuela. Num dia qualquer, chegou em casa com muita dor de cabeça. Não tinha comido nada no intervalo, porque ficou trancado dentro da sala. Perguntei o motivo e ele disse que, quando chegou na cantina, todas as crianças e adultos que estavam por lá riram e perguntaram se ele tinha sido esquecido no forno. Isso até hoje me deixa um pouco engasgada e magoada. Foi o que nos fez voltar a viver no Brasil. Dá muito trabalho criar um filho negro neste mundo.

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