Recusa a ver ‘Olhos que Condenam’ pode ser um ato revolucionário

Narrativas exclusivamente dolorosas podem ser, na verdade, alienantes

por Dodô Azevedo no Folha de São Paulo

Olhos que Condenam – Divulgação

Em 2011, eu caminhava numa tarde de verão pelo Central Park, em Nova York, quando fui atacado por cinco adolescentes. Tentativa de furto.

A polícia já me encontrou sozinho, no chão, sem meus pertences comigo.

Rapidamente, e sem me pedir a descrição física de ninguém, os oficiais recolheram dezenas de jovens negros nas redondezas e os perfilaram à força, na minha frente, para reconhecimento. Sofrido e
ultrajado, recusei-me. Às vezes, recusar-se a apenas sofrer pode ser revolucionário.

Corta para 2019. Central Park de novo. Muitos brasileiros negros vêm se recusando a assistir até o fim à série do momento: a produção americana “Olhos que Condenam”, que estreou no fim de maio na Netflix e conta a história real de cinco adolescentes negros acusados injustamente pelo estupro de uma mulher no mais famoso parque do mundo, em 1989.

Os quatro capítulos acompanham cada um dos rapazes na prisão, a maneira como são tratados pela Justiça, a relação com a família, as mudanças que sofrem nos anos em que ficam sem liberdade, o acirramento das tensões raciais nos Estados Unidos.

Se há quem esteja evitando assistir à série, como, então, ela é a mais vista da história da plataforma? Somos, no mundo, uma espécie fascinada por sofrer assistindo ao sofrimento do outro. Somos aqueles que, tendo nos perdido de vista, desejamos ver na marca de nossa ausência o olhar do outro, em que, eventualmente, nossa presença possa surgir.

E aqui vivemos no país de filmes como “Tropa de Elite” e “Cidade de Deus”, por exemplo, nos quais o sofrimento do negro nos eletriza em vez de nos traumatizar.

Mas há o que o sempre inspirado Igor Verde, jovem roteirista brasileiro e negro, chama de “narrativas que projetam novas possibilidades de vida”. Entre os musicais brasileiros, são os que contaram as vidas de Elza Soares e de Dona Ivone Lara. Na televisão, programas como “Mister Brau”. Nos Estados Unidos, o luminoso “Guava Island”, filme que Childish Gambino produziu com Rihanna em Cuba. Ou Spike Lee, com os seus longas-metragens “Faça a Coisa Certa” e “Infiltrado na Klan”, que nos fazem chorar —e também rir.

São narrativas que se recusam a representar negros exclusivamente sofrendo. São olhos que condenam “Olhos que Condenam”. Narrativas exclusivamente dolorosas podem ser, na verdade, alienantes. De imediato, catarse sintética. A longo prazo, esquecimento. É por isso que não há uma história, um mito originário africano, que seja exclusivamente trágico —ou inteiramente uma festa.

Se Ava DuVernay, a fenomenal roteirista e diretora da série, mulher negra americana, acerta ao captar o espírito do tempo e apontar como principal vilão do planeta hoje a opinião pública, o cidadão de bem, ela escolhe uma ferramenta narrativa que contraria a sua ancestralidade e carrega somente trauma. Nenhuma proposta.

Talvez por isso, a existência de espectadores brasileiros que resolveram não se submeter à produção pode ser algo positivo. Vi “Olhos que Condenam” por dez minutos, lembrei-me de minha estadia no Central Park e parei.

De Berlim, onde se prepara para uma mostra com todos os seus filmes, Sabrina Fidalgo, diretora brasileira e negra, escreveu em rede social que “cansou das representações exclusivamente sofrida de negros”.

Blackyva, ator não binário e negro que brilhou recentemente nas peças de Felipe Hirsch, informou que não pretende chegar perto da série. Lázaro Ramos, ator e diretor da peça “O Topo da Montanha”, revelou uma estratégia para chegar ao fim dos capítulos.

Novas posturas. Acompanhar as etapas singulares que determinam a imagem de si mesmo no reconhecimento oferecido pelo olhar do outro só nos melhora.

Um amigo recebeu na semana passada um bilhete de sua filha —negra, oito anos, aluna em escola de bairro nobre, de maioria branca. “Não quero mais ser negra”, escreveu ela, após só oito anos
vivenciando este mundo.

Transtornado, o pai, também negro, sentou-se no sofá e foi assistir a “Olhos que Condenam”. Não aguentou 20 minutos. “Onde achei que encontraria o eco das minhas questões, só encontrei propagação da dor”, ele me disse, depois de desligar a TV. Às vezes, recusar-se a apenas sofrer pode ser revolucionário.

Dodô Azevedo é mestre em estudos da linguagem, cineasta, roteirista e autor do livro ‘Fé na Estrada’

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