Reivindicando o espaço para nos chamarmos Feministas Africanas

Apresentação e suplemento à tradução do texto de Minna Salami “Uma breve história do feminismo africano”

Por Âurea Mouzinho Do Ondjango Feminista

“O Feminismo não é africano e é uma importação ou moda que as algumas mulheres africanas apanharam do ocidente”. Esta é uma das críticas mais comuns feitas às mulheres africanas que escolhem afirmar-se como feministas. Sem fugir à regra, a criação do Ondjango Feminista, trouxe à baila os mesmos argumentos, com o objectivo não só de questionar a legitimidade do movimento feminista em Angola, mas também como forma de silenciar algumas das causas defendidas pelas mulheres feministas, como se dá no caso da luta pela descriminalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) e pelo direito ao aborto seguro.

Para a maioria da sociedade angolana, ainda é difícil compreender e aceitar a existência de mulheres que questionam o lugar de subserviência ao qual elas são constantemente relegadas, bem como as condições que ajudam a manté-las nessa condição; mulheres que reivindicam os seus direitos, incluindo os direitos sexuais (!); mulheres que lutam não só pela eliminação das desigualdades entre os géneros mas por uma transformação nas relações e estruturas de poder; mulheres movidas por um sentido de justiça social no seu sentido mais amplo; mulheres que politizam o privado e privatizam o político; mulheres que intendem revolucionar a forma como se pensa a mulher na sociedade e na política angolana.

Como não se conhecem, ou finge-se não conhecer, mulheres africanas que lutaram por estes ideias antes do nosso tempo, é fácil argumentar que as feministas africanas não têm credibilidade porque o que defendem é inconsistente com os “valores tradicionais africanos”. Noutra altura escrevo um ensaio sobre a falácia deste argumento acerca da construção da “identidade africana”; mas por enquanto o desafio centra-se em desmistificar a ideia de que o feminismo africano é uma invenção recente, um modismo, ou uma importação, tal como faz Minna Salami no seu artigo intitulado “Uma breve história do feminismo africano”.

Nesse artigo, Minna Salami dá-nos indicações sobre como a luta pela justiça e pela liberdade sempre foi parte integrante da vida das mulheres africanas nos períodos coloniais e pós-coloniais, e como é que esta resistência serviu como base para a criação de uma ideologia feminista africana e do movimento feminista africano. Embora neste artigo Minna não faça referência aos contextos pré-coloniais, em outro artigo ela cita exemplos de mulheres que tiveram poder económico, político e espiritual tal como as Mulheres Fon de Daomé (guardas presidenciais do reino de Daomé, Benim); ou mulheres que utilizaram os seus poderes reais para lutar por justiça para o seu povo como as rainhas Makeda da Etiópia (Rainha de Sabá) e Mnkabayi de Zululand (África do Sul e Zimbábwe).

“Face à ausência de registos históricos suficientes para comprovar a existência e a forma de organização dos matriarcados em África, é necessário tratar qualquer extremo com cepticismo.”

Ao citar os exemplos destas mulheres, Minna evita cair no erro de argumentar que todas as sociedades africanas pré-coloniais eram matriarcais, embora em outro momento ela argumente que os matriarcados nunca existiram em África. A minha posição neste debate é que, face à ausência de registos históricos suficientes para comprovar a existência e a forma de organização dos matriarcados em África, é necessário tratar qualquer extremo com cepticismo. Digo isto não para argumentar que os matriarcados não existiram, mas para dizer que é necessário tratarmos a história do continente africano com a seriedade que lhe é devida e deixarmos de usá-la ou distorce-la ao nosso bel prazer para dar legitimidade aos nossos argumentos. Afinal de contas, história não deve ser opinião.

Gosto de acreditar que tenham existido no período pré-colonial culturas africanas mais igualitárias, justas, abertas e até mais empolgantes.  Há evidência disso em muitos dos valores tradicionais que resistiram ao tempo e à violência, tal como o ideal isiXhosa do Ubuntu e a prática buganda do Kunyaza, que valoriza a sexualidade e o prazer sexual feminino. Contudo, face aos registos existentes do patriarcado tradicional, duvido que esta tenha sido a realidade objectiva de todo o continente. Olhando para o contexto pré-colonial das mulheres acima citadas, vê-se que apesar de terem existido culturas em que algumas mulheres gozavam de privilégios em função das suas posições sociais, estes privilégios não eram abrangentes para todas as outras mulheres da mesma cultura, muitas das quais sofriam discriminações e eram submetidas a práticas sexistas como o casamento infantil, a excisão sexual, violações, escravatura sexual, e eram até vítimas de feminicídio.

Entretanto, mesmo entre estas “mulheres anónimas”, havia resistência ao patriarcado, embora com custos elevados. Num artigo da revista feminista queniana The Wide Margin, Cera Njagi, conta a história de como os feminicídios de honra deixaram de ser praticados na aldeia de Bakiga no sul do Uganda. Segundo o conto, nesta aldeia todas as raparigas que ficassem grávidas antes do casamento eram consideradas uma desgraça para a comunidade e eram condenadas à morte. Elas eram levadas até às quedas da cascata Kisiisi e empurradas na presença da aldeia toda, embora nenhuma questão fosse levantada sobre o rapaz ou homem que a havia engravidado. Certo dia, mais uma rapariga que havia “desonrado a comunidade” foi condena à morte e levada até às quedas. Durante o caminho ela pediu clemência, mas ninguém a escutou. Quando foi colocada já no cimo da cachoeira, prestes a ser empurrada, a rapariga rapidamente agarrou a mão do irmão mais velho, que esteve até então a apoiar a decisão da comunidade, e quando foi empurrada caiu com ele cachoeira abaixo, e os dois morreram. Desde aquele dia, os feminicídos de honra deixaram de ser feitos naquela comunidade sem muito questionamento ou cerimónia. Segundo este conto, foi preciso o acto desleixado (e feminista, ainda que acidental) de uma rapariga, para despertar a comunidade sobre a injustiça do acto,  e salvar mutias outras raparigas desta prática sexista.

Na ausência de registos históricos, contos como a rapariga de Bakiga, que sobreviveram em virtude da tradição oral, também têm testificado a existência de mulheres que sempre se opuseram ao patriarcado desde o início da história. Por isso, “embora a palavra ‘feminismo’ tenha sido importada”, como Minna argumenta, a essência do feminismo – a oposição ao patriarcado –  nunca foi estranha para as mulheres africanas.

“Embora a palavra ‘feminismo’ tenha sido importada”, como Minna argumenta, a essência do feminismo – a oposição ao patriarcado –  nunca foi estranha para as mulheres africanas”

Os contextos coloniais trouxeram outro tipo de dinâmicas para as mulheres africanas e com eles outros tipos de resistência, tanto individuais como colectivas, também foram formados. Aqui, em Angola, todas as mulheres que se organizaram em torno da luta anticolonial pela independência de Angola (independentemente das fileiras partidárias em que se  encontravam), são testemunho disso. Geralmente destacam-se as mulheres do esquadrão Kamy do MPLA (Irene Cohen, Lucrécia Paim, Engrácia dos Santos, Teresa Afonso, e Deolinda Rodrigues), mas sabemos que para além delas outras mulheres estiveram envolvidas na luta pela independência e pela emancipação da mulher. Muitas das histórias destas mulheres estão relatadas no Livro da Paz da Mulher Angolana.

Quando contemplo para a rica história de cada uma destas mulheres angolanas, africanas, e dos objectivos traçados pelos movimentos que elas começaram ou estavam inseridas, pergunto-me: se isto não é feminismo, o que defendiam elas então?! Certamente que o feminismo defendido pelas mulheres africanas hoje não é o mesmo defendido pelas mulheres nos tempos pré-coloniais, coloniais e no período imediatamente depois das independências, pois os contextos mudam e com isso também as prioridades. E não podia ser diferente, pois, como defende Frantz Fanon “a cada geração cabe, com uma certa incerteza, descobrir a sua missão, defendê-la ou traí-la”. Acredito que dando continuidade ao trabalho árduo lançado por estas mulheres africanas o desafio apresentado às feministas angolanas, e africanas, é muito claro. Para mim nada o deixa mais clarividente do que os escritos de Deolinda Rodrigues, quando ela desafiando-nos dizendo: “…ou restauramos a dignidade humana em Angola, ou desaparecemos todos, porque ninguém pode estar indiferente às condições tão desumanas que nos desafiam em Angola. Como é que vamos responder um dia aos nossos filhos quando nos perguntarem por que razão o nosso país deixou-se permanecer durante cinco séculos sob o jugo assassino de Portugal e o que foi que nós fizemos para mudarmos as coisas? Que espécie de Angola vamos legar às gerações vindouras? Que condições de vida? Que dignidade? É agora que a nossa resposta deve ser forjada e não podemos desiludir as nossas responsabilidades…” (leia mais no livro de Libânia Jimenez Rodriguez, Heroínas de Angola).

A causa defendida por Deolinda foi a mesma causa defendida por várias mulheres por todo o continente, muitas das quais são conhecidas hoje como as grandes vozes contemporâneas do Feminismo Africano. Na academia encontramos Amina Mama (Nigera), Sylvia Tamale (Uganda), Patricia McFadden(Swzilandia), Bisi Adelaye-Fayemi (Nigéria) entre outras contribuíram substancialmente para a teorização do feminismo africano moderno. Fora da academia, muitas mulheres também contribuíram para a causa tanto através do seu activismo (Freedom Nyambura, Zimbábwe; Jéssica Horn, Uganda) como pelo seu discurso crítico sobre a condição da mulher por meio da literatura (Ama Ata Aido, Gana; Buchi Emecheta, Nigéria; Nawal El Saadawi, Egípto; Mariama Bâ, Senegal) ou da música (Miriam Makeba, Africa do Sul; Bi Kidude, Zanzibar).

“O feminismo africano sempre teve um assento bem sólido não só na resistência contra o sexismo mas também contra o imperialismo e o colonialismo que marginalizavam cada vez mais as mulheres africanas”

Todas essas histórias mostram que, desde a sua concepção, o feminismo africano sempre teve um assento bem sólido não só na resistência contra o sexismo mas também contra o imperialismo e o colonialismo que marginalizavam cada vez mais as mulheres africanas. Portanto, ele sempre albergou um entendimento muito contextualizado e crítico da condição das mulheres africanas situado no espaço e no tempo. Assim, como defendem as feministas africanas, o feminismo é uma parte importante da história das mulheres africanas, ele sempre existiu em África e sempre foi radical. E por radical aqui quero dizer que ele sempre mobilizou as mulheres africanas para combater não só o patriarcado, mas também toda a forma de injustiça contra as mulheres.

Face a este histórico, a alegação de que o feminismo é uma moda ou uma importação não é só falsa mas também constitui um grave insulto à memória e à história das várias mulheres africanas que lutaram pelos direitos das mulheres e por sociedades africanas mais justas e igualitárias. Como defende a Carta de Princípios Feministas para as Feministas Africanas, enquanto feministas africanas nós “reivindicamos e afirmamos a longa e rica tradição de resistência das mulheres africanas ao patriarcado em África” e isso certamente concede-nos  legitimidade para nos  chamarmos feministas africanas.

É nosso dever enquanto feministas africanas não só saber esta história, mas também de a divulgar e assegurar que as nossas próprias narrativas enquanto mulheres africanas são registadas. A história tem uma tendência cruel de invisibilizar as mulheres, principalmente as que de um modo ou de outro subverteram as normas do seu tempo. Portanto, uma das tarefas essenciais do nosso activismo enquanto feministas africanas é a da preservação da história das lutas das mulheres africanas contra a opressão patriarcal, bem como a da documentação das lutas dos nossos tempos para que as futuras feministas também saibam que não estão sós na luta pelos seus direitos. Ao reivindicar o nosso espaço enquanto Feministas Africanas não podemos deixar de reconhecer o poder da história, da memória e da documentação como formas de activismo.

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