RELIGIÃO E DEMOCRACIA

por Dulcelina Vasconcelos Xavier – CFEMEA –

 

Os brasileiros e as brasileiras entraram no terceiro milênio com renovada esperança nos valores democráticos, perceptível, entre outras coisas, pela eleição de um presidente oriundo dos movimentos sociais. No entanto, a convivência democrática requer vigilância e aperfeiçoamento constantes para consolidar direitos, garantir a liberdade e a pluralidade.

 

Necessitamos fortalecer os instrumentos democráticos, em especial o Congresso Nacional, e trazer à reflexão de toda a sociedade os temas importantes para continuarmos avançando. Entre estes temas relevantes está a relação das religiões com o Estado democrático e de direito.

 

Contrariando avanços históricos e sem garantir a ampla discussão que a questão merecia, foi assinado um “Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil”, que poderá colocar em risco o Estado democrático e de direito que custou valiosas vidas e muitos anos de luta.

 

Vemos com muita preocupação este “Acordo” assinado em 13 de novembro de 2008, que se encontra (no momento da publicação desse documento) na Comissão de Relações Exteriores, da Câmara de Deputados, para discussão e futura votação, podendo ser transformado em norma federal. Destacamos alguns aspectos do mesmo com o objetivo de trazer à reflexão o significado e o peso que podem ter tais questões para a convivência democrática, plural e laica.

 

No artigo 11 do “Acordo” há um aspecto importantíssimo, que é a responsabilização do Estado na tarefa de transmissão do ensino religioso. Ora, cada religião deve se responsabilizar pela transmissão de seus valores e doutrina. A educação deve garantir uma formação de boa qualidade e com base em parâmetros científicos e universais. Deve usar os recursos públicos de forma responsável para o benefício de todos/as alunos/as e não para disseminar preceitos reservados de um grupo, mesmo que seja uma religião tradicional em determinado local.

 

No artigo 14 nota-se claramente o interesse em garantir privilégios econômicos quando a Santa Sé propõe que o poder público “se empenhe” em reservar espaços territoriais no Plano Diretor das cidades para cedê-los “para fins religiosos”. Inicialmente destacamos a gritante contradição entre esta manifesta busca de benefícios próprios e o que está escrito e ficou consolidado como doutrina social católica, inspirando aqueles que fizeram a opção pelos pobres e lutam pela igualdade. Na Encíclica Gaudim et Spes: 430, lê-se:

{xtypo_quote}Deus destinou a terra, com tudo o que ela contém, para o uso de todos os homens e povos, de tal modo que os bens criados devem bastar a todos, com equidade, sob as regras da justiça, inseparável da caridade. Sejam quais forem as propriedades, adaptadas às legítimas instituições dos povos, segundo circunstâncias diversas e mutáveis, deve-se atender sempre a destinação universal dos bens”.
No Artigo 15 do Acordo, a Igreja Católica expõe o verdadeiro interesse econômico: “Às pessoas jurídicas eclesiásticas, assim como o patrimônio, renda e serviços relacionados com as suas finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade tributária referente a impostos, em conformidade com a Constituição Brasileira”. Na sequência, no parágrafo único, o Vaticano se refere a “atividade educacional sem finalidade lucrativa…{/xtypo_quote}

É importante notar que no texto do “Acordo”, a Santa Sé reconhece que tem atividades e que delas aufere “renda” e sobre isso não quer pagar nenhum imposto. Cabe aqui um questionamento muito sério: é justo que um/uma trabalhador/a pague imposto sobre seu salário que é considerado “renda” para efeito dos impostos federais e a Santa Sé queira isenção sobre a “renda” que declara ter?

 

Para refletirmos sobre o significado destas proposições é importante informar a população sobre o alcance da presença das instituições católicas no ramo da educação. As escolas católicas constituem parcela significativa do setor da educação no país. O tamanho desta fatia pode ser avaliado pelos números da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil; na sua fundação em 30 de outubro de 2007, congregava 370 mantenedoras de entidades educacionais e assistenciais, 18 Universidades, 11 Centros Universitários, 16 Faculdades, 1400 Escolas de Ensino Fundamental e Médio, com 1.200.000 alunos e 80 mil professores e funcionários. As escolas católicas têm, a exemplo das de outras religiões, entre as mensalidades mais caras do país e o acesso de pobres a elas é mínima ou inexiste.

 

Do ponto de vista social esta proposta é injusta, considerando que vivemos num país desigual, onde a distribuição de renda é uma das mais perversas do mundo. Isso significa que há milhões de pessoas que não têm acesso à educação, à saúde, à moradia, à terra, e a outros direitos básicos. Mesmo com programas sociais que garantem um apoio mínimo, há problemas crônicos que precisam de muito investimento social para ser sanados. O mundo hoje vive uma crise econômica que afeta a todos os países e o desemprego é a primeira consequência que atinge os que já estão numa situação de exclusão. Nesta situação o que se espera do Estado, e essa é a sua obrigação, é que tenha meios para assistir a massa despossuída.

 

Na área da saúde, é só lembrar que na maioria dos municípios brasileiros existe uma “Santa Casa” administrada, em geral, por uma instituição religiosa católica. Com a terceirização da saúde nos municípios, as OS (organizações sociais), entre elas as “Santas Casas”, estão assumindo a saúde pública. No entanto, não querem disponibilizar todas as políticas a que a população tem direito, especialmente as relacionadas à saúde sexual e reprodutiva, que entram em contradição com a doutrina da Igreja Católica. Além de não implementar as políticas públicas, não devolvem o dinheiro do que não oferecem à população.

 

O artigo 16 propõe que se reconheça legalmente a isenção da responsabilidade social da Santa Sé com aqueles que prestaram serviços a ordens religiosas. Com este artigo a Igreja Católica, instituição milenar e rica, fica desobrigada a cumprir leis trabalhistas e a proteção social daqueles que dedicam tempo e trabalho para as obras da Santa Sé.

 

O conteúdo deste “Acordo”, mesmo considerando que setores da Igreja Católica tiveram importante papel no apoio à luta por democracia, é um desrespeito as outras denominações religiosas uma vez que não as trata como iguais. Desrespeita também o caráter laico do Estado brasileiro, que reconhece e garante a existência e a expressão de todas as crenças, mas não pode privilegiar nenhuma. Também encontramos dentro dos próprios documentos da Igreja Católica argumentos que apóiam o pluralismo e a separação entre a igreja e o Estado, sendo que os ensinamentos católicos exigem respeito pela liberdade e crenças de outros grupos religiosos e aceita o princípio e separação entre a Igreja e Estado. Segundo o documento do Concilio Vaticano II, Gaudium et Spes,

{xtypo_quote}É de grande importância, sobretudo onde existe uma sociedade pluralística, que se tenha uma concepção exata das relações entre a comunidade política e a Igreja… comunidade política e Igreja são independentes e autônomas” (76). [Católicas e católicos] “Reconheçam as legítimas opiniões, divergentes entre si, acerca da organização da ordem temporal, e respeitem os cidadãos e grupos que as defendem honestamente (76).{/xtypo_quote}

Encontramos aqui uma clara distinção entre os ensinamentos morais da igreja católica e o direito dos poderes do Estado de usar juízos prudentes no desenvolvimento de suas políticas públicas. Na contramão dos anseios da população, especialmente a pobre, e contradizendo sua doutrina, a Igreja Católica propõe este “Acordo” que quer eternizar o privilégio de desenvolver atividades econômicas – educação e saúde são as mais visíveis – mas sem pagar os impostos que todas as empresas pagam, sem contribuir com sua parte num país onde há tanta desigualdade.

O comportamento da Igreja Católica, ou de qualquer outra religião, ao tentar que suas idéias e posições prevaleçam, nos desafiam a fortalecer os princípios democráticos e laicos, no qual o respeito à diversidade e à pluralidade sejam garantidos. Assim, a aprovação de um “Acordo” com este teor poderá significar um retrocesso caracterizado pelo privilégio de uma religião em detrimento de tantas outras e o sacrifício de interesses de cidadãos e cidadãs deste país.

 

Ao governo brasileiro perguntamos: que razões podem levar um Estado constitucionalmente respeitoso de todas as religiões a estabelecer privilégios para uma única religião, tais como: isenção de impostos e liberação de cumprimento de leis trabalhistas?

 

O que importa ao Vaticano: firmar-se como um poder político ou identificar-se com o Evangelho e os desafios pastorais de nossa época?

 

A Igreja Católica e outras igrejas merecem, especialmente pela ação de tantas pessoas e grupos comprometidos com o verdadeiro e incondicional amor ao próximo, o reconhecimento e o respeito de todos e todas. Mas, é preciso que a sociedade faça a reflexão sobre que lugar as religiões devem ocupar numa sociedade democrática. Torcemos e esperamos que seja o lugar do respeito aos direitos de todas as pessoas e instituições existirem de forma igual, democrática, respeitosa e sem o uso de subterfúgios para se sobrepor a outros ou obter qualquer privilégio – mesmo que seja em nome de qualquer divindade.

 

Esperamos que os/as parlamentares rejeitem este “Acordo” para garantir a laicidade do Estado brasileiro e a pluralidade de idéias e crenças no nosso país, sem sacrificar a liberdade ou os direitos de qualquer cidadã ou cidadão.

Dulcelina Vasconcelos Xavier é socióloga e feminista, integrante de Católicas pelo Direito de Decidir
Texto originalmente publicado pelo CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessorias em Brasil e Vaticano: o (des)acordo republicano, de 2009.

Matéria original: RELIGIÃO E DEMOCRACIA

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