Aos 26 anos, Rene Silva é um dos jovens comunicadores mais originais do Brasil. Ele cresceu no Morro do Adeus, uma das favelas que integram o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Com 11 anos de idade, criou um jornal comunitário com a ajuda do professor e assim começava o Voz das Comunidades, que, em 2010, ganhou atenção internacional depois de fazer uma cobertura em tempo real da intervenção militar no Complexo do Alemão. Enquanto os profissionais da imprensa não conseguiam acessar o conflito, Rene, na época com 17 anos, relatava através das redes sociais o que estava vivenciando em sua comunidade.
Hoje, com 15 anos de existência, o Voz das Comunidades mantém correspondentes em nove favelas cariocas, um jornal impresso, um portal e um aplicativo próprio. Em meio à situação emergencial que foi desencadeada pela pandemia de coronavírus, o Voz das Comunidades também mobilizou um gabinete de crise junto de outros agentes comunitários e tem atuado para receber doações que possibilitam que alimentos e produtos de higiene cheguem às pessoas que perderam sua fonte de renda.
Em entrevista ao Trip FM, Rene Silva fala sobre o impacto da pandemia nas favelas, comunicação e racismo. “Se a gente tivesse uma repercussão parecida ou igual a do George Floyd, nos Estados Unidos, conseguiria demonstrar a nossa força, o que estamos fazendo”, diz. “Somos um país que ignora as mortes de crianças e jovens negros, que morrem por conta da violência policial brutal”.
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Trip. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal proibiu as ações da polícia nas comunidades do Rio de Janeiro. Como está a situação vista por dentro, para você que vive o dia a dia das comunidades?
Rene Silva. Primeiro, eu fiquei muito impressionado com a decisão e por ter sido citado. O ministro Edson Fachin usa um tweet meu sobre as operações policiais que estavam acontecendo durante a pandemia. Ele acabou justificando que ativistas como Rene Silva, Raull Santiago e Buba Aguiar têm se manifestado através das redes sociais sendo contra as operações policiais. Eles começam a observar que as nossas ações de combater a fome durante esse momento de pandemia estavam começando a ser em vão, porque as operações policiais estavam acontecendo dentro das favelas e muitos jovens começaram a ser mortos, como foi o caso do João Pedro, em Niterói, no Morro Santa Marta, na Cidade de Deus. Neste último caso, durante uma das entregas de cestas básicas organizada pela frente na CDD. Passamos por vários momentos desde o início da pandemia que fizeram com que o ministro tomasse essa decisão. Talvez a gente hoje estivesse num cenário muito pior. A gente acaba sofrendo os efeitos colaterais muito antes, né? Por exemplo, a fome chegou na favela antes do vírus começar a circular no Alemão. Pediram para todo mundo ficar em casa, de quarentena, se cuidando, mas muitos ficaram sem renda. A gente começou a se mobilizar pra tentar, de alguma forma, contribuir. Essa decisão do ministro Fachin é realmente muito polêmica, mas acho que é de extrema importância, principalmente pelo que a gente está tentando fazer, já que o Estado, todas as esferas do poder público, não entram com sua capacidade maior de combater a fome e o vírus dentro das favelas. Cabe a nós fazer doações de álcool em gel, sabonete líquido e até material de proteção, os EPIs, para as UPAs e hospitais.
Por ter nascido em uma comunidade e por ser um profissional de comunicação, o que você pensa sobre a polícia, especialmente a do Rio de Janeiro? Tem solução? O que pode melhorar? Quando começaram a falar das UPPs, das polícias comunitária e pacificadora, as pessoas começaram a ter um pouco de esperança de que haveria a mudança dentro da Polícia Militar. O que a gente tem vivido dentro das favelas é muito caótico. Todas as favelas que têm UPP têm baile funk e muitos acontecem com a própria autorização da UPP, que deixa passar porque vai receber arrego. Então, a corrupção dentro da polícia ainda é muito grande. Parece que a gente não tem liberdade de chegar e voltar a hora que quiser. Se você chega a qualquer hora em casa, você é taxado de vagabundo ou qualquer outra coisa. Eu não tenho muita esperança de que da polícia virá alguma mudança. Através da UPP, a gente pode provar isso.
Você teve que fazer uma transição importante do impresso para o digital e criou até um aplicativo próprio. Como você faz a gestão do seu grupo de comunicação? Essa migração se deu principalmente pelo fato de as pessoas das favelas começarem a ter muito mais acesso à tecnologia, ao smartphone. Começamos a investir muito mais no on-line e também na produção de audiovisual e outros materiais. O jornal impresso continua porque a gente sabe que tem um público que mora na favela que não tem acesso à internet. O aplicativo tem três meses e foi feito em parceria com o Consulado dos Estados Unidos, que entrou em contato com a gente. A proposta era fazer um projeto para combater as fake news, que a gente já tinha em mente, mas não tinha dinheiro para colocar em prática. Esse é nosso grande desafio, de combater a desinformação. É um aplicativo muito completo, a gente tem uma seção de entradas ao vivo, as reportagens, uma área onde as pessoas podem contribuir para checar informações, dizer se são verdadeiras ou não.
Vocês ganham dinheiro com publicidade com o jornal? Desde o início do Voz das Comunidades, a gente têm uma receita publicitária, de comerciantes locais e, com o passar do tempo, começamos a ter grandes corporações e grandes empresas anunciando com a gente. Já tivemos a TIM, Nextel, Coca-Cola, Sebrae. Os comerciantes locais continuam sendo uma prioridade porque a gente vê que a área de classificados, de anúncios, é uma seção importantíssima para o morador de favela. É legal ver a Coca-Cola anunciando ali, mas o cara que vende gás é mais interessante, mais útil. Quando as grandes empresas anunciam, a gente vê a expansão do jornal, a ampliação da qualidade, a gente pode ter mais pessoas na equipe. Então a gente enxerga como um progresso também.
As empresas foram extremamente afetadas pela chamada crise da Covid-19. Vocês, no jornal, sofreram perdas de receita, tiveram que demitir gente ou estão conseguindo manter a mesma pegada? Pelo contrário. A gente dobrou a nossa equipe porque surgiu uma demanda muito maior das favelas de acesso à informação, de doações. E a gente viu tanto o número de empresas quanto de pessoas físicas que nos apoiam aumentando muito. Muitos jornalistas da grande mídia são doadores, por exemplo a Sônia Bridi e o Pedro Bial. Essas pessoas acabaram doando ainda mais para fortalecer o jornalismo local e comunitário. Temos um apoio anual do Twitter Brasil, eles fazem uma doação em dólar todo ano. Com essa doação, a gente consegue investir não só na parte on-line, nas mídias digitais, mas também off-line, no jornal impresso, com as despesas de aluguel. Temos conexão com algumas empresas e empresários que nos fortalecem. Depois da revista da Gol, por exemplo, muitas outras pessoas se conectaram com a gente.
O jornalismo de televisão hoje está olhando para a favela de um jeito menos maniqueísta? A grande mídia tem uma responsabilidade e uma irresponsabilidade quando fala sobre a favela. Para a grande mídia, sempre todo mundo é bandido, traficante, vendedor de droga. Essa narrativa, dos anos 90 e 2000, ainda é presente hoje, em 2020. Quando a gente olha para uma reportagem falando sobre tráfico de drogas na favela, a grande mídia imediatamente coloca como bandido. E quando se fala de uma pessoa que trafica drogas na Zona Sul, é um entregador, um delivery, um estudante que disse que vende drogas e transporta. Há um preconceito e um racismo muito grande quando se fala de pobre, preto e favelado. Alguns jornalistas estrangeiros, por exemplo, entram em contato com a gente e falam: “Vocês têm milhões de pautas incríveis sobre a favela, por que a grande mídia não está falando sobre isso?”. É preciso um jornalista de fora do Brasil, como do New York Times, Washington Post, The Guardian, fale sobre a nossa realidade. Não só sobre os problemas que a gente vive, mas também sobre o que tem de positivo acontecendo. Aí é necessário ampliar as participações de mídias comunitárias, como o Voz das Comunidades, no Complexo do Alemão, o NORDESTEeuSOU, em Salvador, o Vozes das Periferia, em São Paulo, o Diário de Ceilândia, em Brasília, a CDD Acontece, no Rio de Janeiro.
Quem são as grandes referências de pessoas negras, do universo da favela, que estão fazendo um trabalho libertador no Brasil? Uma das principais referências é o Celso Athayde. A história de vida dele, com a Cufa, de como ele cria líderes, é muito importante para o fortalecimento institucional das ONGs e das lideranças negras. Vai na Cufa e olha quantos líderes negros têm no Brasil inteiro, que poderiam estar liderando empresas e projetos. O Edu Lyra, por exemplo, também é um cara incrível que eu admiro e conheço há muito tempo, que faz o Gerando Falcões.
Sei que você está empreendendo em outras áreas, não só na cobertura jornalística, na comunicação. Me conta um pouquinho sobre esses outros negócios que você está pilotando. Tem uma hamburgueria que comecei há quase um ano aqui no Complexo do Alemão, junto com meu tio. Meu foco maior sempre vai ser o Voz das Comunidades, a comunicação. A minha visão empreendedora é de que a gente possa gerar transformação social dentro do lugar, girando a economia, os negócios, isso é super válido dentro de um mundo capitalista onde nós vivemos. Eu acabei me dedicando um pouco a outras atividades e isso acaba sendo uma terapia. Falar de hambúrguer é muito diferente de falar de problemas sociais da favela, de violência policial, falta d’água, falta de saneamento básico.
No mês passado, houve o caso do norte-americano George Floyd, que foi assassinado por um policial. Você mencionou uma menina de 14 anos que foi atingida em casa, em São Gonçalo, com não sei quantos tiros e a repercussão foi infinitamente menor. Qual a sua análise em relação a isso? Acho que esses protestos que aconteceram nos Estados Unidos mostram o quanto a mídia e a sociedade como um todo está bastante consciente em relação aos crimes de racismo. No Brasil, não temos uma grande mídia que fale e que dê destaque para o que está acontecendo. Acho que se a gente tivesse uma repercussão parecida ou igual a que do George Floyd, nos Estados Unidos, a gente conseguiria demonstrar a nossa força, o que a gente está fazendo. Somos um país que ignora as mortes de crianças e jovens negros, que morrem por conta da violência policial brutal.
No passado, a única referência de ascensão social que existia para o moleque na favela era o traficante. Quais são as novas referências para um garoto que está meio perdido numa favela do Brasil? Olha, acho que tem várias outras referências. No Complexo do Alemão, por exemplo, tem o Lucas Lima, que é um menino engenheiro, fez uma faculdade com bolsa e ficou conhecido nacionalmente por inventar uma impressora 3D que imprime próteses para quem não tem algum membro no corpo. Essas referências ainda não têm a visibilidade e o reconhecimento necessários. Eu posso ser um exemplo disso. As pessoas me conhecem e reconhecem na favela principalmente pelo que tem de repercussão na grande mídia, o que sai no jornal. Isso acaba repercutindo positivamente e muitos jovens me veem como referência.
Além de produzir, empreender, ter hamburgueria, ter jornal, como é que você desliga? Como você curte a vida no Complexo do Alemão, por exemplo? Eu me encontro sempre com os jovens aqui da favela, com os meus amigos. Muita gente que faz parte do Voz das Comunidades estudou comigo, isso é muito curioso. Antes da pandemia, eu sempre saía no final de semana para encontrar com os amigos, ficar nas praças, ir ao cinema, sempre procurei ter uma vida fora do horário de trabalho, uma vida normal.
O chamado racismo estrutural ainda é muito forte no Brasil. Mas também vemos um fortalecimento das vozes contra o racismo nos últimos meses, nas manifestações. Mudou alguma coisa com esse debate mais quente no Brasil ou o jovem negro e morador de comunidade continua sendo abordado de forma estúpida e violenta pela polícia? Acho que continua exatamente a mesma coisa. Infelizmente, muitos jovens negros acabam sendo revistados de forma arbitrária, racista e preconceituosa. Se você é jovem, preto e favelado e está no asfalto, nas áreas nobres, sofre muito mais.
Como um garoto de 26 anos, com essa trajetória, você tem esperança de que esse país evolua? Tenho muita esperança no Brasil, em todas as regiões, norte, nordeste e centro-oeste. Temos um país muito plural, colorido, com uma musicalidade muito diferente. Então, isso me enche de esperança e expectativa de um país melhor, mais solidário, longe de preconceitos, onde a gente possa ter mais liberdade. Acredito na juventude. Acredito que a gente vai fazer um barulho na história, uma revolução muito grande através de várias áreas, como educação, esporte, saúde, educação, acho que está caminhando para isso. Mesmo com essa pandemia que a gente está vivendo, eu tenho uma esperança muito grande de que outras pessoas ao redor do mundo estão nos vendo e vão contribuir para uma mudança social no nosso país.