Resenha: O brasileiro, o racismo silencioso e emancipação do afrodescendente – por Viviane Martins

Viviane Martins

O Ensaio “O brasileiro, o racismo silencioso e emancipação do afrodescendente”, escrito em 2002 pelo psicólogo, doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, Ricardo Ferreira trata sobre como o racismo sutil foi estabelecido no Brasil e como se constitui a identidade do negro em nosso país. O autor utiliza a história de uma família constituída por pessoas negras a fim de ilustrar o texto. Ferreira inicia seu Ensaio trazendo a questão da democracia racial brasileira como sendo uma farsa e um entrave para o combate ao racismo e ao preconceito racial no Brasil. Algumas pesquisas apontam que 90% dos brasileiros acreditam que o racismo existe e conhecem pessoas racistas, porém apenas 10% das pessoas pesquisadas afirmaram ter preconceito racial, ou seja, ele é atribuído, na maioria dos casos, ao outro. Dessa forma, dificulta-se o enfrentamento, já que as pessoas não admitem possuir esse tipo de atitude.

O autor cita o “gradiente de cor” existente na população negra, usando o exemplo da família citada; as três mulheres da família não se autoafirmavam negras – uma se dizia branca, a outra morena e a última, mulata. Apenas a partir das experiências de discriminação racial e do contato com a militância, todas passaram a se reconhecerem como negras. O preconceito racial, de um modo geral, não é tratado abertamente nas famílias. Pelo contrário, denominar o negro de moreno parece ser politicamente correto. O autor relembra que a identidade é construída a partir das interações sociais, então o silenciar sobre o preconceito racial vivenciado pelo afrodescendente contribui para a introjeção de valores negativos em relação a si mesmo e ao seu próprio grupo.

Posteriormente, o autor apresenta aspectos históricos, os quais ele acredita ter contribuído com a instalação do preconceito no Brasil. O primeiro deles é a própria Modernidade, tendo como marco inicial o período das Grandes Navegações e a descoberta do Novo Mundo. A Modernidade trouxe a necessidade de ordem e progresso e para isso, foi adotada, de forma exacerbada, a estratégia de classificar que, para o
autor, significa “incluir o semelhante no padrão desejável e excluir o diferente”. Consequentemente, a intolerância torna-se característica básica das práticas modernas, tornando possível o genocídio. O holocausto judaico é apresentado como exemplo. Ele traz também a escravidão no Brasil como exemplo de um genocídio que ele chama de silencioso: “a experiência da escravidão no Brasil transformou o africano em escravo, o escravo em negro, e o negro numa pessoa destinada a ‘desaparecer’, em nome da constituição de um povo cordial e moreno.”

O segundo aspecto histórico foram as ideias de branqueamento defendidas no início do século XX por intelectuais e cientistas, legitimando a ideia de inferioridade do negro. Estas ideias previam a extinção do negro no Brasil e a imigração do branco europeu a fim de favorecer essa extinção.

O autor delimita três condições que tornaram possível o desenvolvimento do preconceito e sua forma de expressão no referido país: a primeira é a desvalorização e eliminação do diferente em nome da busca pela ordem; a segunda, o processo histórico de escravização do negro africano, reduzindo-o a um mero objeto de uso; a terceira e última consistiu na disseminação de ideias, legitimadas pela ciência, que afirmavam a inferioridade do negro e previam a sua extinção. Na década de 1930, Gilberto Freyre formula o mito da democracia racial, contribuindo com a forma de expressão do preconceito racial à brasileira.

Ferreira coloca ainda em seu Ensaio que o mundo utiliza como referência o padrão branco, o negro acaba por utilizar a referência desse padrão branco na constituição de sua identidade, desvalorizando o “mundo negro” e, consequentemente, desvalorizando a si próprio. A escola acaba sendo conivente e até servindo como espaço para que essa suposta inferioridade do negro seja ratificada. Além disso, o negro é responsabilizado pelos problemas etnorraciais, ou seja, os problemas socioeconômicos enfrentados pelos negros é de responsabilidade apenas deles, esquecendo-se o processo histórico e as questões sociais que ocasionaram esses problemas, de fato. O autor considera também que o padrão de beleza que impera na sociedade é o padrão branco. Dessa forma, o indivíduo negro tem a sensação de não pertencer a nenhum grupo, portanto se sente desvalorizado socialmente. O texto afirma que pesquisas apontam que pessoas submetidas à discriminação tendem a apresentar baixa autoestima, autoconceito pobre, ansiedade e depressão. Porém, se o negro toma consciência dessa desvalorização, ele pode iniciar um processo de enfrentamento, valorizando-se por suas características raciais. A partir das experiências discriminatórias, o negro é obrigado a pensar sobre as questões raciais, o que acaba proporcionando a desarticulação com o mundo simbólico e uma série de sentimentos “negativos”, que o movem para a ação. Nesse momento, o negro pode vir a praticar o preconceito contra o branco. Ele ainda enxerga a identidade negra como algo externo e acaba por se comportar de forma estereotipada, ou seja, como acha que o negro deve agir. O indivíduo se apega exageradamente a símbolos da cultura negra e acaba por excluir o diferente. Segundo o autor, nesse momento, o negro ainda não está constituindo a nova identidade a partir dos valores negros, mas a partir da desvalorização e exclusão dos padrões brancos. Com o passar do tempo, o indivíduo torna-se menos radical e abandona a visão idealizada e romântica em relação à negritude. Ferreira afirma que “a ‘nova identidade’ construída possui três funções dinâmicas: defender e proteger a pessoa de agressões psicológicas; prover um sentido de pertença e ancoradouro social; e prover uma fundação, ou ponto de partida, para transações com pessoas de culturas diferentes daquelas referenciadas em matrizes africanas.”

Na última sessão do texto, o autor coloca algumas propostas em pauta: a realização de um debate no contexto escolar sobre o preconceito e as páticas discriminatórias, já que a escola é responsável pela formação e educação; a participação do negro em grupos de militância, com o fim de que a vergonha de ser negro, se transforma em orgulho de ser negro; a ampliação do debate na academia e a contribuição da Psicologia no combate à discriminação; por fim o autor propõe “que a pessoa branca deixe de negar suas raízes culturais africanas e indígenas, assim como o negro brasileiro, sua raízes culturais europeias e também indígenas.”

Ferreira conclui o texto afirmando que aceitação da alteridade é condição fundamental para que haja a reversão do preconceito. Quando o autor coloca os aspectos históricos, a interpretação possível é que o ato de classificar e a necessidade de ordem surgiram junto com a Modernidade, sendo esta responsável até mesmo por genocídios. Sabe-se que o ato de classificar é inevitável ao ser humano e é necessário, pois simplifica nossa vida no mundo. A estratégia de classificar é tão antiga quanto a própria vida em sociedade ou em grupo, assim como a necessidade de ordem. Desde o princípio da humanidade existe a necessidade de se ordenar, como por exemplo, é o caso da divisão de papeis desde a Pré-história que, provavelmente, tinha a função de manter certa ordem. Na Idade Média, os romanos classificavam como “bárbaros” todos os estrangeiros. Certamente, essa nomenclatura era carregada de preconceitos em relação aos estrangeiros, o que significa que a intolerância não é característica restrita à Idade Moderna. Outro aspecto a ser considerado é questão da possibilidade do genocídio que, segundo Ferreira, foi proporcionada pela Modernidade. Sabe-se que as Cruzadas promovidas pela Igreja em nome de Deus foram verdadeiros genocídios. Centenas de pessoas foram mortas nas Cruzadas em nome também de uma ordem, da evitação e combate ao “caos”. Uma verdadeira eliminação do diferente, daquele que não estava de acordo com os padrões delimitados pela Igreja. Ferreira trata da escravidão no Brasil como um genocídio silencioso; provavelmente ele não considerou, neste Ensaio, as inúmeras e frequentes mortes de negros africanos, sobretudo, nos navios negreiros que transportavam os africanos de forma bastante precária e até desumana. Foi um genocídio nada silencioso. O autor descreve um processo de construção identitária do negro brasileiro (que ele chama de afrodescendente) sem deixar claro uma fundamentação teórica e empírica consistente. Além disso, a forma de construção dessa identidade descrita no texto parece uma ideia generalizada e, o que é mais grave, padronizada. Os movimentos negros mais incisivos e radicais são tratados no texto como românticos e idealizadores da negritude, possuidores de atitudes preconceituosas em relação aos brancos. Para o autor, os militantes desse tipo de movimento estão em fase de transição no processo constituinte de sua identidade. Essas afirmações podem ser facilmente negadas: a supervalorização da cultura negra afrobrasileira não constitui uma forma de desvalorizar a cultura branca, pois esta já está supervalorizada. Não pode se utilizar as mesmas estratégias para grupos socialmente e historicamente diferentes. Faz-se necessária uma forma de reparação do grupo oprimido social, economica e historicamente. As possíveis soluções para o combate ao preconceito e discriminação racial apresentadas pelo autor possuem eficácia duvidosa. Atualmente, sabe-se que a melhor forma de diluição do preconceito é tratá-lo de forma indireta, utilizando-se a estratégia grupal da aprendizagem colaborativa.

Apesar de apresentar algumas lacunas, este Ensaio traz ideias bem estruturadas, e os argumentos usados para explicar o motivo da forma de expressão do preconceito racial no Brasil estão bem colocados, de forma a convencer o leitor; ele parece atingir o objetivo ao qual se propõe.

Ferreira, R. F., O Brasileiro, O Racismo Silencioso e Emancipação do Afrodescendente. Psicologia & Sociedade; 14 (1): 69-86; jan/jun. 2002.

 

Fonte: Os Esteriótipos e a Pscologia Social

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