Pioneira das batalhas de poemas falados no Brasil acredita na revolução em ouvir o que o outro tem a dizer: “Olhar outro ser humano falar um poema é muito revolucionário”, afirma em entrevista ao HuffPost Brasil.
POR Ana Ignacio, do HuffPost Brasil
Foi uma semana de silêncio absoluto. Depois disso, algumas poucas palavras, devagar. Há dez anos, ela teve que aprender de novo a falar e passou dias tendo que dizer apenas o essencial, escolhendo pouquíssimos termos para vocalizar. Roberta Estrela D’Alva, 40 anos, atriz-MC, apresentadora, slammer (entre muitas outras coisas) ficou totalmente sem voz. “Tive um cisto e tive que reaprender a falar e voz tem [muita relação com] o outro, como o outro sabe o que se passa entre a mente e o coração. Ela materializa o que está dentro para fora. Falar implica em ser ouvido ou não ser ouvido e ser massacrado no seu direito expressivo”.
Aos 30 anos, Roberta precisou passar por uma cirurgia e por todo esse processo novo com a sua fala. Talvez esse tempo tenha intensificado ainda mais seu interesse e ligação com esse tema que é grande parte de seu instrumento de trabalho e tão significativo para a vida em sociedade. “A voz não é a corda vocal, é outro negócio. Voz é um mistério, me interessa a voz… a voz de poder, a voz no palanque. Depois de um tempo ouvindo a mesma frequência vira um mantra. Você entra em transe e você desliga e quando vem alguém diferente, quebra. Uma voz diferente, um timbre diferente. Os defeitos da gente, as coisas meio tortas, erradas é o que dá personalidade e isso vai valer ouro em um mundo tão pasteurizado, já está valendo”.
A voz é como o outro sabe o que se passa entre a mente e o coração.
Nessa época, Roberta já tinha uma voz que era ouvida. Atriz de formação, criou há dez anos o ZAP (Zona Autônoma da Palavra), primeira competição de slam do País, e já integrava o grupo Bartolomeu de Depoimento, um coletivo de teatro hip-hop. Hoje, além dessas atividades, ela apresenta o programa Manos e Minas, é curadora do Rio Poetry Slam, professora, pesquisadora e lançou neste ano o documentário Slam – voz de levante, sobre o surgimento e crescimento da cena do slam no Brasil. Tudo muito relacionado com oralidade, palavra e voz – naquele conceito mais amplo. Talvez estejam aí as chaves do trabalho de Roberta.
Nascida em Diadema, ABC Paulista, o envolvimento com a cultura hip-hop começou cedo e logo que saiu da faculdade de artes cênicas já se envolveu com o Bartolomeu. “Foi o primeiro grupo que tinha Racionais em cena, era hip-hop misturado com teatro e a gente tem muito essa coisa de fazer. A gente faz nosso filme, nossa série, tem a ver com o hip-hop esse autodidatismo, essa auto representação, você não precisar que ninguém conte a sua história por você, a gente conta a nossa própria história. Acho que tem isso no tipo das coisas que a gente faz no Bartolomeu e do que eu desenvolvo”. Muito da estética e linguagem de seu trabalho foi construída naquele espaço e após quase 20 anos de atuação no grupo, ela continua com essa formação e visão. “Até sofro um pouco para explicar quando sou chamada para algumas coisas porque eu tenho minha linguagem. Às vezes me falam para colocar um headset pra fazer e eu falo não! Me dá um microfone na mão, bastão, isso aqui é um instrumento de poder”.
Me dá um microfone na mão, bastão, isso aqui é um instrumento de poder.
Com esse instrumento em mãos, foi abrindo e descobrindo outros caminhos nessa área. Ao ser chamada para transformar uma entrevista em uma peça, teve o primeiro contato com as competições de slam. Assistiu duas fitas que falavam de spoken words e slam. “Eu falei: que coisa! [risos]”. Depois foi para Nova York fazer pesquisas de hip-hop para uma peça e foi a dois clubes tradicionais de slam por lá. Só ficou ainda mais interessada pelo que ouvia. “O que mais chamou atenção para mim foi a diversidade. Porque tinha gente de tudo quanto é tipo, vários assuntos e um jeito de se expressar diferente um dos outros”. Na volta, foi atrás de competições do tipo no Brasil e não encontrou nenhuma. “Falei: gente! [risos]”. E assim nasceu o ZAP. “Completou 10 anos esse ano e nós passamos de um slam em 2008 para 149 em 2018, então o negócio cresceu muito”.
Ninguém dá voz para ninguém, porque todo mundo já tem voz.
Realmente. E Roberta vê que o Brasil seguiu seu próprio caminho nesse território e diferentemente dos EUA e Europa, por exemplo, onde as batalhas ocorrem em clubes e locais fechados, aqui as competições tomaram as ruas e praças e gerou um interesse grande das pessoas. E não a toa. “O que o slam tem é essa educação não convencional, um aprende com os outros, as linguagens, as ideias e você não está na escola, mas você está. As pessoas têm uma noção de que estão se educando, senão a praça Roosevelt não bateria 800 pessoas em uma segunda a noite para ouvir poema. E foram para ouvir com o seu próprio dinheiro, não tem incentivo, não tem propaganda não tem nada. O que é isso? Se isso não for revolução eu não sei o que é. Em um mundo em que as pessoas não se falam mais, parar para se ouvir, olhar outro ser humano falar o que ele acredita, falar um poema… Acho muito revolucionário esse poder”.
Se isso não for revolução eu não sei o que é.
Outra revolução que essas competições apresentam no Brasil ao longo desses dez anos é a grande presença de mulheres e do tipo de questões que são colocadas nos poemas. “No Brasil o slam tem uma cara. A questão do gênero e da raça está muito na frente e isso não é ruim, é uma necessidade. Mas isso não pode inibir uma pessoa de ir lá e dizer um poema de amor, isso não pode inibir alguém de falar um poema sobre os animais, porque cada um com as suas urgências. Fico sempre como guardiã do que é o slam, que é diversidade. É isso também [discussões de gênero e raça], mas ele pode ser outras coisas”.
De qualquer forma, seja qual for o tema, essas batalhas de poesias faladas tem relação com o cerimonial da oralidade, da contação de história, da construção coletiva que é feita nesses momentos de troca, algo ancestral na verdade. “O MC, o slammer, o poeta do sarau são esses caras que toda cultura teve, o porta voz de alguma coisa que a comunidade precisa dizer. Ele elabora esteticamente com a palavra e transforma em poesia e diz em nome de pessoas às vezes não podem dizer”.
Roberta consegue ver como o slam hoje ajuda a retomar boa parte disso, a sua própria maneira e força, pelo uso da palavra. “A palavra tem esse peso no nosso mundo e a palavra oral não é escrita, tem a performance, o corpo em presença que é o ser humano com outro ser humano. Quem está falando tem um grau de memória e quem está ouvindo também e criamos uma memória comum. Oralidade está muito ligada a memória”.
A questão do gênero e da raça está muito na frente e isso não é ruim, é uma necessidade.
Com o slam, essas memórias se juntam nos espaços de batalhas. “É o ritual, essa dimensão que a gente foi perdendo…os guerreiro se reunindo em volta da fogueira para contar suas histórias, sabe? Só que não tem fogueira. Tem o microfone, tem a praça. Essa é a necessidade do ser humano de contar seus problemas, de ter alguém que elabore poeticamente e tenha sua voz ouvida, porque eu tenho falado muito que ninguém dá voz para ninguém, porque todo mundo já tem voz. Agora que essa voz seja ouvida é outra coisa. Então falo que [quero] que o slam faça com que essas vozes sejam ouvidas”.
Aquela questão da voz. Que precisa mesmo do outro para ser mais do que escutada, respondida. Ou contestada, questionada ou continuada. Sempre nessa troca, nessa construção. Roberta segue assim – com o microfone na mão. Mas não se confunda. Não tem a ver com falar alto. Não é o volume que faz a voz ser escutada. Trata-se mais do poder da mensagem e da palavra que é dita.
Ficha Técnica #TodoDiaDelas
Texto: Ana Ignacio
Imagem: Caroline Lima
Edição: Andréa Martinelli
Figurino: C&A
Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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