‘Roma’ e a perversidade colonial

Sob o fino verniz de denúncia social reside uma obra de quem se recusa a sair de seu lugar de privilégio

Por Ana Flavia Gerhardt, do Plano Aberto 

Cena retirada de Roma/ Reprodução

No contraste entre quem elogia e quem critica o filme “Roma” (disponível na Netflix), do mexicano Alfonso Cuarón– e é neste segundo grupo que me incluo -, não tenho identificado quem se ocupe em descrever as bases de conhecimento que podem subsidiar diferentes leituras do filme. Meu artigo discute uma dessas bases, para definir com precisão o que a meu ver é a grande questão problemática de “Roma”, que tem escapado ao olhar de muita gente, mas cuja plausibilidade tem sido acolhida em diálogos travados com algumas pessoas antes e durante a confecção deste texto.

Abordarei os dois aspectos mais recorrentes na escrita dos articulistas que tenho lido. O primeiro diz respeito à valorização de um presumido distanciamento de Cuarón em relação ao universo que pretendeu retratar. O segundo, de certa forma decorrente do primeiro, trata da relação romantizada entre a protagonista Cleo e os filhos de seus patrões em relação à profundidade de uma crítica à desigualdade social no México. Há pelo menos duas avaliações para esses aspectos, relativamente às duas visões de mundo que “Roma” suscita – e é o confronto entre elas que me interessa.

Cena retirada de Roma/ Reprodução

“Roma” e o Descolonialismo

Essas duas visões correspondem a dois diferentes lugares histórico-sociais que o filme em si evoca: o do colonizador e o do colonizado. Tais lugares precisam ser levados em conta para que se note que minha crítica para o filme remete a uma concepção de mundo diferente daquela em que Cuarón se coloca ao contar a história de Cleo, concepção essa em que muitos que elogiam a obra inadvertidamente se inserem. A discussão mais importante que se faz entre esses dois lugares tem sido realizada pelos estudos em Descolonialismo, um modelo de pensamento que organiza conceitualmente formas de pensar o mundo da perspectiva dos povos despossuídos, explorados e discriminados.

Assumir uma postura descolonialista implica situar-se no campo das línguas, das práticas sócio-cognitivas e das categorias de pensamento não incluídas nos modelos ocidentais de mundo. A possibilidade de instaurar teoricamente os modos de pensamento dos povos colonizados não é nova, mas tem sido fortalecida por intelectuais do Terceiro Mundo como a brasileira Luciana Ballestrin, o português Boaventura de Souza Santos, o peruano Aníbal Quijano e o argentino Walter Mignolo, entre outros. Tais autores recusam a ideia, absoluta por séculos, de que apenas pensadores europeus, homens e brancos, estão autorizados a definir as bases teóricas da narrativa sobre a história das Américas a partir de seu descobrimento.

Sem a colonização não haveria capitalismo

Diferentemente da perspectiva eurocêntrica, o Descolonialismo não arroga para si nenhum privilégio de ser a única forma verossímil e fidedigna de narrar a história dos povos colonizados e subjugados. É evidente que muitos pensadores europeus se propuseram e cumpriram com grande brilho essa tarefa, tanto que alguns deles, como Foucault e Derrida, sustentam os trabalhos de intelectuais pós-colonialistas como a indiana Gayatri Spivak e o camaronês Achille Mbembe, nome forte neste momento. O problema é que, a rigor, os pensadores do Velho Mundo não discutem a violência imperialista e capitalista com base numa matriz de pensamento efetivamente racial, porque estudam os povos europeus, cujas experiências são muito diferentes das dos povos indianos, africanos e sul americanos – ou seja, os que ocupam territórios colonizados.

A autoridade da visão descolonialista provém, entre outros aspectos, da singularidade da economia colonial no Novo Mundo, baseada na vinda de africanos para serem explorados como escravos nas plantações de cana, café, algodão etc. O que os teóricos descolonialistas defendem é que, embora a fase escravocrata do capitalismo tenha arrefecido (ainda que a escravidão não esteja extinta no mundo), o pensamento que a engendrou ainda permanece, porque ainda é útil para as formas contemporâneas de dominação. Aliás, sem a colonização sobretudo na América Latina, nem existiria capitalismo.

A perspectiva eurocêntrica de mundo: a verdade branca e masculina como a única que interessa

O olhar descolonialista denuncia a ausência, no pensamento eurocêntrico, de bases de conhecimento que se prestem para falar de forma minimamente fidedigna sobre a história de pessoas cujos ancestrais remontam a civilizações avançadas, que prosperaram por séculos até que invasores vindos do outro lado do oceano as dizimaram por ganância e sede de poder. Essa ausência é absurda, porque legitima narrativas formadas a partir de um pensamento alienígena, arrogante e opressor, que foi engendrado sem que em nenhum momento se tenha procurado saber quem são realmente essas pessoas, que conquistas elas realizaram e do que são capazes, como seres humanos potentes. Além disso, ela ignora os ganhos sociais obtidos pela transformação de pensamento das pessoas que coletivamente se reúnem para pensar e agir sobre suas condições de vida.

Cena retirada de Roma/ Reprodução

Por séculos, acreditou-se num suposto conhecimento universal e superior, que produziria um olhar universal, tido como objetivo, neutro, em comparação com o qual todos os outros se qualificam de alguma forma. Mas hoje sabemos, com o apoio de farta literatura pós-estruturalista, pós-colonialista e descolonialista, que essas supostas neutralidade e objetividade são de fato um ponto de vista específico: o do homem branco europeu supostamente heterossexual. Filmes como “Z – A cidade perdida” descrevem com precisão que perspectiva é essa, especialmente em relação a outros corpos que habitam outras regiões diferentes da Europa ocidental.

A partir do século XVI, o pensamento eurocêntrico, que muitos ainda acreditam ser a única visão de mundo possível capaz de basear modelos filosóficos, artísticos e científicos, buscou justificar a exploração gananciosa dos territórios do Novo Mundo e a escravização das pessoas africanas forçadas a trabalhar neles. Por serem não brancas e não-europeias, essas pessoas pertenceriam a uma categoria inferior de seres humanos: seriam menos inteligentes, menos planejadoras, menos racionais e menos competentes que os europeus; portanto, só se prestariam ao trabalho subalterno, servil.

Africano ou sul-americano, tanto faz

Tidos também como escravos, os membros das civilizações que já ocupavam as Américas antes da chegada dos europeus também acabaram recebendo do colonizador imperialista o mesmo estatuto de subalternidade. Já descrevi tal modelo de mundo em artigo anterior, em que discuti o pós-colonialismo. Ao inventar o conceito de raça como um dos elementos definidores das diferenças entre as pessoas, e subalternidade como sua derivada, os europeus inventaram também o racismo, ideia também fundamental para que o projeto colonial-capitalista tivesse sucesso.

Assim como conhecimento é poder, poder também é conhecimento, e o poder econômico e militar amealhado ao longo dos séculos pelos homens europeus, aos quais se juntaram os norte-americanos, lhes permitiu impor de forma absoluta sua forma de ver o mundo, como se fosse a única. Dessa maneira, aos homens brancos seria conferida a objetividade, a racionalidade, a intelectualidade, e quem não é homem e quem não é branco estaria desprovido dessas qualidades: seria subjetivo, irracional, emocional, criador de mitos, e não de ciência. Por esse motivo, não poderia ter propriedades, direito de estudar, de votar e ser votado, direito de compor instâncias decisórias, direito de criar, de ser autor de alguma coisa, de ter emprego e salário.

Pode o subalterno falar?*

A invenção da subalternidade racial reforçou mais ainda a presença dos homens europeus nos lugares privilegiados de pensamento, ação e poder. Nesses lugares também estão os que apresentam as narrativas da História nos moldes ocidentais como sendo as únicas verdadeiras, porque foram eles os vencedores. Estamos falando, evidentemente, de homens brancos encaixados nos modelos heteronormativos de vida, e de classe social abastada, na esfera detentora de poder político e econômico.

Como tudo o que o ser humano cria está situado no tempo e no espaço, a criação artística e seus criadores não fogem a isso. Sabemos que durante muito tempo a Arte esteve em mãos praticamente exclusivas de pessoas de uma elite sócio-econômica que por séculos ocuparam – e ainda ocupam – lugares de privilégio social, o que lhes permite acesso à formação necessária para as realizações que desejam. Apenas muito recentemente é que pessoas que não se encaixam nesse padrão têm obtido algum reconhecimento de seu trabalho em todos os campos de conhecimento. No Cinema, o reconhecimento de mulheres cineastas é ínfimo em relação à reação preconceituosa e ressentida dos privilegiados que temem o fim de sua exclusividade no camarote vip. Isso aconteceu com a reação machista e deselegante de dois cineastas à projeção alcançada por Anna Muylaert com seu “Que horas ela volta”.

Os homens brancos em condição de privilégio social têm mantido por séculos o monopólio sobre tudo, inclusive sobre as formas e conteúdos de pensamento. Por séculos, as formas de pensar consideradas superiores, legítimas e relevantes foram aquelas definidas por aquele grupo de pessoas, sendo inadmissível que qualquer outro possa pensar de forma diferente de como eles pensam, e esse pensamento ter qualquer relevância. Os colonizados, por sua vez, precisam abraçar os valores e crenças, e se contentar com os lugares sociais definidos pelos que pela força os subjugaram.

O colonizador sempre sabe tudo

Uma das coisas que fazem com que a gente perceba que uma pessoa está usando e abusando do seu lugar de colonizador é quando, além de ter nascido nesse lugar, ela se encontra fazendo coisas que o colonizador normalmente faz, e uma delas é assumir a prerrogativa de falar pelo colonizado, e não apenas a de falar paraele. Isso inclui definir a priori como o colonizado pensa, como vive, o que pode desejar e o que deve fazer, sem respeito por seu pensamento e individualidade. É uma forma de controlar tudo, inclusive o que se pensa sobre os efeitos da desigualdade e da injustiça que o grupo privilegiado tem provocado. Apenas a ele cabe falar da desigualdade; apenas ele pode retratar com fidedignidade, numa pretensa objetividade, como vivem os desfavorecidos.

Evidentemente, isso é possível e é efetivamente feito para ratificar a opressão social e econômica junto com o acúmulo infame de capital e poder. Por exemplo, não é sem motivo que, com a finalidade de justificar a apropriação pelos ruralistas dos territórios destinados aos índios brasileiros, o homem branco recentemente empossado para o mandato de quatro anos como presidente do Brasil estabeleceu de antemão e por sua conta o que querem os índios brasileiros: segundo ele, os índios querem ser assimilados à cultura ocidental, querem viver como os brancos. Em seja: numa inversão de sentido típica do fascismo, o presidente inventa que os índios desejam entregar aquilo que os colonizadores planejam usurpar deles.

“Roma” é uma história contada por quem não saiu de seu lugar de privilégio

Falas como essa existem porque, antes da expropriação dos povos mais vulneráveis daquilo que é seu por direito, há o apagamento do desejo e da vivência de comunidades, povos inteiros até, a fim de colocar nesse lugar cognitivo o pensamento do colonizador. Os colonizadores julgam-se proprietários das mentes das pessoas, além de seus corpos, e por muitos anos foram mesmo, e o número de pessoas que questionavam isso era muito pequeno para representarem alguma ameaça. Só que esse número tem aumentado cada vez mais, e muitos desafiam a prerrogativa colonizadora de dizer quem somos, o que podemos e como devemos viver.

Cena retirada de Roma/ Reprodução

Por tratar de uma pessoa que o pensamento histórico hegemônico, de base europeia e masculina, considera subalterna, “Roma” se torna uma obra cujas bases de conhecimento necessariamente precisam ser avaliadas de uma perspectiva descolonialista, a única que provém da fala, da opinião e da prática das pessoas de que o filme presumidamente trata. Dessa perspectiva, percebe-se que “Roma”, embora apresente um relato sobre a condição subalterna dos povos mexicanos originais, é uma obra produzida por um homem branco marcando seu lugar privilegiado na sociedade que resolve descrever a desigualdade social, racial e de gênero no México da década de 70 do século passado, claramente considerando que sua opinião pessoal sobre isso é suficiente para construir um filme.

Em “Roma”, a perspectiva colonial não era a única escolha possível

Ao realizar sua obra, Cuarón em momento algum saiu da sua posição de macho europeu: mesmo mexicano, pertence à classe dos descendentes dos espanhóis colonizadores que mantiveram seu modo de vida mesmo em terras americanas. Não saiu de sua posição de privilégio de homem branco para poder falar de Cleo. Considero possível afirmar isso porque em nenhum momento do filme percebi um sinal de que alguma mulher mexicana descendente dos povos originais foi ouvida sobre o que pensa de sua condição. Por isso, o resultado é um filme que descreve como pessoas como Cuarón vêem pessoas como Cleo, e nada mais. Não percebi nenhum traço de que “Roma” tratava também de como Cleo vê a si mesma.

A possibilidade de observar também o pensamento do colonizado permaneceu todo o tempo aberta porque, na casa onde convivem Cleo e a família de classe média para quem trabalha, estão concretamente marcados os lugares espaciais e sociais do colonizador espanhol e a do colonizado, habitante original do território hoje chamado América Latina. No entanto, cumprindo com a cartilha colonialista, Cuarón assume de forma exclusiva a perspectiva do colonizador imperialista e a impõe de forma acachapante sobre a dos colonizados, que existem ali como presença física mas não como presença agentiva.

Uma personagem estereotipada

Cleo corresponde a vários estereótipos machistas milenares sobre as mulheres e satisfaz as expectativas de muitos homens sobre o comportamento das mulheres em geral – submissas, sem vontade, sem desejo. Servil em todos os sentidos, Cleo está submetida ao desejo e às ordens de outras pessoas, como se espera das mulheres em sociedades de base machista e patriarcal. E, ao ensaiar um escape dos estereótipos machistas, praticando sexo fora do casamento, Cleo ainda cai no clichê da pecadora que é punida por Deus com sofrimento e culpa, que provavelmente a perturbarão por toda a vida, por ter rejeitado na mente e no espírito o ser que engendrou.

Cleo também corresponde aos estereótipos definidos pelos colonizadores acerca da cognição dos povos colonizados, já que, além de apenas ser apresentada comportamentalmente, em vez de situada no mundo das ideias, é tratada como se não fosse capaz de tê-las, nem de elaborar qualquer pensamento acerca da condição injusta e violenta de sua vida.

Cena retirada de Roma/ Reprodução

A protagonista de “Roma” é descrita pelo olhar de uma criança

Assim, além de não ser capaz de agenciar, sequer de reagir, Cleo também é apresentada como alguém que não é capaz de pensar sobre sua condição, e em alguns momentos chega a se comportar como se tivesse algum déficit cognitivo, à exceção de uma das cenas finais, em que sua confissão é mostrada apenas para que seja reiterada, pela enésima vez, sua condição de explorada. Nesse sentido, o contraste entre as diferentes formas de as duas mulheres de classes sociais distintas, Cleo e sua patroa, de lidar com o abandono que sofreram, não reconhece a capacidade de Cléo de em algum momento assumir algum agenciamento sobre sua vida.

A docilidade de Cléo, que poderia ser problematizada como um dos componentes apontados pela literatura científica descolonial como uma das características dos colonizados definida pelos colonizadores, é tratada de forma naturalizada pelo olhar do diretor, que ainda se mantém infantil e romântico como se ele ainda fosse aquele menino que a empregada-babá punha para dormir com canções de ninar. É possível a leitura de que, para o diretor, sua empregada-babá era inerentemente doce, capaz de amá-lo incondicionalmente, e essa ilusão infantil, parte do entendimento do colonizador sobre o colonizado, se manteve na visão do diretor adulto, o que mostra que Cuarón construiu um filme que não apresenta traços de problematização de seu lugar de macho branco e opressor.

Por que é tão difícil enxergar o racismo e o machismo de “Roma”?

Realmente, não posso imaginar retrato mais cruel e verticalizado de uma mulher pobre e não-branca, e é duro reconhecer que, para a grande maioria das pessoas em lugares privilegiados, muitas delas julgando-se politizadas, é assim que mulheres como Cleo, em todos os países do mundo, são consideradas.

Muitos dos que elogiam “Roma” apontam que sua qualidade está na explicitação da perversidade da desigualdade social, em que pessoas como Cleo não têm nenhuma perspectiva de vida e felicidade. Mas, na verdade, a perversidade está é no próprio filme, que reforça a  crença de que pessoas como Cleo não nutrem perspectivas de vida, sonhos, projetos pessoais e de felicidade. Do ponto de vista descolonialista, o que o filme evidencia não é a desigualdade social que produz a miséria e a falta de perspectivas para pessoas como Cleo, mas sim a existência e persistência do modo de pensamento colonial, que Cuarón demonstra assumir ao realizar “Roma”, definindo a priori para os mexicanos originais a forma subalterna de vida, e nenhuma outra forma, como se fosse um destino inescapável.

Neutralidade e objetividade são invenções dos homens europeus

Por tudo o que foi dito, o reconhecimento de alguma denúncia de desigualdade em “Roma” resulta da interpretação do espectador, e não da organização de sentidos feita por Cuarón, já que não há nenhum elemento no filme que sustenta a ideia de que Cuarón não é partidário da visão eurocêntrica de mundo que estabelece para mulheres pobres e não brancas do México uma vida como a que tem a personagem Cleo.

A reforçar a composição de um filme que reproduz a ideologia eurocêntrica e imperialista dos europeus e estadunidenses brancos, ricos e machos sobre os povos colonizados da América, da Ásia e da África, a própria ideia de neutralidade do diretor, que alguns críticos apontaram estar materializada nos travellings que emulam o gênero documentário, é apenas suposta. Além do fato de que toda construção de significado é perspectival, o que afasta qualquer ilusão de totalidade, já sabemos que o que se costumou denominar neutralidade e objetividade é uma das invenções dos homens europeus, imposta acachapantemente sobre as outras visões de mundo não europeias, para justificar o apagamento e a invisibilização das outras formas de viver e pensar.

Tudo o que tem significado resulta de escolhas que revelam lugares de fala

A opção por trabalhar com a câmera distante, supostamente capaz de capturar os cenários completos, já é uma opção que denuncia o lugar de privilégio de Cuarón, que, por ser um privilegiado, e por isso senhor das formas de ver o mundo, demonstra crer ser capaz de enxergar e dizer coisas sobre tudo o que existe.  A pretensão de se situar como observador supostamente objetivo acaba acentuando a visão de um homem branco, latino americano mas de cognição ocidental, de educação patriarcal, olhando para as mulheres e para os não-brancos a partir do seu lugar de privilégio, numa generalização que acaba por abarcar a própria patroa de Cleo, a qual, como a empregada, está completamente totalizada a partir de sua relação com outro homem e as consequências de seu abandono por ele.

Cena retirada de Roma/ Reprodução

Esses elementos nos levam a reconhecer que, muito embora a intenção do autor seja homenagear e louvar essas pessoas, não ter desconstruído sua visão de homem branco europeu sobre as mulheres e sobre os povos dominados do México acaba por ser uma ofensa a essas pessoas. É ofensiva a ação do diretor de assumir uma neutralidade falaciosa, fazendo de conta que não é parte do grupo que está no poder econômico e político há séculos, que não é um homem branco que conquistou prestígio nos Estados Unidos ganhando prêmios após trabalhos bem sucedidos, alguns de qualidade artística destacada.

Felizmente, toda obra é aberta

É difícil reconhecer que Roma é um filme ofensivo aos grupos sociais vulneráveis da América Latina porque por séculos temos incorporado, nós também, os colonizados, a perspectiva europeia de mundo que considera as pessoas de fora do universo anglo-saxão e Europa Ocidental como inferiores e coitadas. Mas é muito grave quando essa mensagem vem de quem está completamente dentro do mainstream e tem à disposição a máquina da indústria cinematográfica para reforçar essa ideia. E é mais grave ainda quando se trata de alguém que cresceu numa sociedade em que a cognição colonial se traveste de afeto nas micropolíticas, e não demonstra ter sequer desconfiado de que esse afeto é mais uma das concessões que o oprimido faz ao opressor para não sofrer tanto – algo que a gente nem precisa ser descolonialista para perceber facilmente.

Contudo, o racismo e o machismo de “Roma” podem estar a serviço de um diálogo que convide a visão e a voz dos excluídos das narrativas hegemônicas, e tenho notícia de que isso já está sendo feito nas casas em que o filme é assistido. Espero imensamente que esse diálogo ajude muita gente a perceber a tragédia histórica que é a imposição de uma narrativa única para as sociedades, algo que o Cinema mais de uma vez já denunciou: Walter Mignolo compara a vigência única do pensamento eurocêntrico com a narrativa de “O Show de Truman”, cujo protagonista por décadas acreditou que os cenários onde vivia eram tudo o que existia. Pois bem… em algum momento é preciso abrir a pequena porta azul e sair da bolha.

*Título de artigo escrito por Gayatri Chakravorty Spivak, teórica pós-colonialista

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