Romulo Fróes presta tributo não convencional a Nelson Cavaquinho

Em seu primeiro disco como intérprete, artista busca ‘beleza estranha’ do mangueirense

Quando surgiu, em 2004, com o disco “Calado”, Romulo Fróes chegou a ser comparado a um “Nelson Cavaquinho indie”. Já em seu segundo álbum, “Cão” (2006), o artista reafirmava a filiação enviesada ao desconstruir “Mulher sem alma”, parceria do mangueirense com Guilherme de Brito.

Desde então, Romulo segue próximo à beleza estranha e triste que a obra de Nelson seguiu, seja em sua carreira solo seja com o grupo Passo Torto — nome que, aliás, podia batizar um clássico do mestre. Portanto, a maior curiosidade em torno do disco “Rei vadio” (Selo Sesc), que o paulistano lança agora apenas com canções do carioca, não é por que fazê-lo, mas sim o motivo de ter demorado tanto.

— Nelson ocupava minha cabeça e minhas intenções desde meu primeiro disco — conta. — No ano do centenário de nascimento dele (2011), a ideia começou a se desenhar melhor. Mas eu não podia fazer como faço sempre, seguir para o estúdio e ir gravando sem dinheiro. Porque há direito autoral. Então, eu dependia de um parceiro financeiro. Em 2011, tentei editais, não rolou. Até que surgiu essa oportunidade com o Selo Sesc. Gravei ano passado. Só que estava envolvido com um trilhão de lançamentos, como os discos da Elza Soares (ele assina a direção artística de “A mulher do fim do mundo), do Passo Torto com a Ná Ozzetti (“Thiago França”) e os meus “Barulho feio” e “Por elas sem elas”. Então, acabei deixando para agora. Aí me liguei nessa efeméride dos 30 anos da morte dele, na próxima quinta-feira, 18 de fevereiro.

CAVAQUINHO E CUÍCA COM GUITARRA E BASS SYNTH

No disco, Romulo une instrumentos do universo do samba tradicional — cavaquinho e cuíca, por exemplo — com guitarra e bass synth. O tom geral é do samba entortado, não convencional, menos pelos instrumentos usados — alguém ainda se choca com a guitarra? — e mais pela forma como eles são usados, numa gramática que Romulo tem construído com parceiros como Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral.

— “Rei vadio” é um disco de samba, mas do jeito que a gente toca samba. Eu, Kiko, Rodrigo, Cabral, todos profundos conhecedores do samba, mas com outro olhar. Thiago (França) fez um arranjo clássico, meio Moacir Santos, para “Juízo final”, mas a música acaba com o som da Charanga (A Espetacular Charanga do França), gravado na rua, no carnaval. Já em “Mulher sem alma”, ele fez um arranjo solto, free jazz — avalia o cantor. — Eu me preocupei em não fazer um disco-tributo clássico, reunir músicos bons para tocar lindamente. Não queria ser canônico, tudo o que Nelson não era. Minha outra preocupação era não pagar de louco, como montar um trio de rock e sair tocando rock com Nelson Cavaquinho, fazer ruídos experimentais. Seria fácil. Não queria esse caminho. A ideia era um outro olhar sobre ele, sem parecer devedor a ele no pior sentido, sabendo que não vou deixar Nelson mais punk do que ele já é.´

O repertório traz sucessos como “Juízo final”, “Luz negra” e “Notícia”, mas está longe de ser um best of. Compositor fazendo seu primeiro disco puramente de intérprete, Romulo conta que buscou canções que poderia explorar a partir de sua estética — e que soassem vivas e coerentes em sua voz.

— Não quis cantar “Pranto de poeta” ou coisas como “As rugas já fizeram residência no meu rosto”, as falas mais de um negro velho, sambista do morro, algo que não sou. “Fico feliz em Mangueira porque/ Sei que alguém há de chorar quando eu morrer”, essas coisas. Ninguém vai chorar por mim na Mangueira — brinca Romulo, reconhecendo que também fez questão de evitar duas outras canções: — Arreguei para “Duas horas da manhã”, por causa da gravação do Paulinho da Viola, e “Folhas secas”, pela interpretação da Elis Regina. Não tinha o que fazer ali. Nas que gravei, fui tentando os caminhos música a música, numas mais comedido, noutras soltando mais a voz, esticando uns tons pra cima e outros para baixo, fora da região de conforto da minha voz. “Luz negra”, que canto com Criolo, está muito alta para mim. “Luto” está baixa.

Além de Criolo, que emula Nelson Cavaquinho em sua gravação, o disco traz a participação de cantores como Dona Inah, Ná Ozzetti e um coro feminino da Velha Guarda Musical da Nenê de Vila Matilde. Cada um à sua maneira, todos seguindo a proposta de um tributo não convencional.

— Dona Inah é escolha óbvia, é o Nelson de saias. E, na primeiríssima vez em que a vi, ela estava sentada fora da roda, levantou para dar uma canja e cantou “Folhas secas”. Ainda houve isso. Achei lindo o arranjo que Rodrigo Campos fez para ela em “Eu e as flores”. Ná Ozzetti, além da grande cantora que é, ainda traz essa quase provocação paulista que fizemos de botar letra num choro de Nelson (“Caminhando”, que ganhou versos de Nuno Ramos). Esse canto falado dela, essa coisa meio Carmen Miranda que ela tem, ficou superbonito ali, como eu imaginava.

PROMESSA DE PAÍS QUE NÃO SE CUMPRE

Romulo lembra ainda que escolheu a Velha Guarda da Nenê de Vila Matilde por amor a essas cantoras de samba, esses coros que chamam a atenção nos discos do também sambista Monsueto, por exemplo. “Vou partir”, que elas cantam, lhe parece um bloco se formando.

— E tem a ideia do “defeito” que Kiko Dinucci diz, uma característica nossa que Nelson também carrega, uma beleza estranha. Porque não é um coro que abre vozes, é um coro selvagem, desordenado, que fica lindo. Nuno escreveu: “Nelson Cavaquinho é nosso contato imediato com aquilo que deu profundamente errado em nós”. O Brasil parecia ter entrado nos eixos finalmente, mas há algo no fundo, que tem a ver com ser preto, pobre, que não muda. Esse lugar de onde Nelson vinha, esse embate com a vida, persiste no país. Nelson é uma espécie de retrato do país, essa promessa de felicidade da bossa nova que não se cumpriu e talvez não se cumpra nunca. A gente tem que se dar conta dessa tragédia que o Brasil tem. Mas que sejamos dignos e nobres na tragédia, como ele foi.

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