RUPTURA DE PARADIGMAS

Fonte: Marcelo Brody

Com um público muito reduzido, foi exibido, na mostra não competitiva, na tarde desta segunda-feira, no Palácio dos Festivais, o documentário EM QUADRO – A HISTÓRIA DE 4 NEGROS NAS TELAS, com direção, roteiro e produção executiva de Luiz Antonio Pilar. Depois da apresentação do filme, Vera Armando, mestre de cerimônias, convidou ao palco o diretor para oferecer algumas palavras ao público a respeito da obra. Pilar mencionou o desequilíbrio de oportunidade existente ao negro contemporâneo nas telas brasileiras, assim como salientou que a sua obra tem como objetivo causar uma reflexão, tem um cunho didático e que pretende ser distribuída nas escolas da rede pública do país para fomentar esta discussão.

 

A obra se desenvolve a partir dos depoimentos, mesclando trajetórias pessoais e profissionais, dos atores: Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Zezé Motta e Léa Garcia. Depoimentos esses permeados pelos comentários dos cineastas: Roberto Farias, Cacá Diegues, Antônio Carlos da Fontoura e Joel Zito Araújo, que trabalharam com os respectivos atores em obras como O ASSALTO DO TREM PAGADOR, XICA DA SILVA, A RAINHA DIABA E FILHAS DO VENTO.

 

O filme tem um ritmo muito dinâmico, alternando os depoimentos dos atores entre si, com imagens de fotos pessoais e cenas dos filmes por eles realizados, juntamente à análise dos quatro cineastas. A partir dessa mescla, inclusive com a inserção de alguma trilha de fundo, a narrativa torna-se muito prazerosa de ser acompanhada. Quanto ao aspecto do conteúdo dos depoimentos colhidos, vale ressaltar que todos os quatro grandes atores negros tiveram uma infância de extrema dificuldade e que entraram no mundo das artes em razão de vocação e do extremo fascínio que a tela grande lhes exercia. Curiosidades, revelações pessoais e de cunho profissional foi o resultado obtido pelo diretor. Ruth de Souza tem o depoimento mais contido e talvez um pouco melancólico em razão de nunca ter desempenhado um papel de protagonista em todos estes anos de carreira, como ressalta no seu depoimento. Milton Gonçalves enfatiza que, para ter aceito o papel principal do filme A RAINHA DIABA, consultou o seu filho Maurício, naquele momento com oito anos. Disse que a obra lhe rendeu todos os grandes prêmios da época e, por esta razão, credita ele, ficou cinco anos sem receber um novo convite, talvez pelo fato de os diretores acharem que seu cachê teria ficado muito alto. Léa Garcia reporta que iniciou sua carreira por insistência do seu marido, que via nela o potencial latente. Foi nos palcos que ela percebeu, depois de sua estreia nos tablados, que sua paixão ali estava. Zezé Motta contou que, depois da realização de XICA DA SILVA, se sentiu, pela primeira vez, como uma mulher bonita e desejada. Relata que ela e Sônia Braga, que havia no mesmo período interpretado a protagonista de Gabriela, de Jorge Amado, na televisão, uma branca e outra negra, eram os símbolos sexuais da época. Entretanto, teve que lidar com a frustração de que alguns homens que a cortejavam a confundiam com a personagem e que, para não decepcioná-los, muitas vezes abdicou do seu prazer. Algo como declarou certa vez, em tom melancólico, Rita Hayworth, que os homens deitavam com Gilda e acordavam com Rita, fazendo menção ao filme GILDA (1946), de Charles Vidor, que protagonizou. Entretanto, o depoimento mais contundente pensamos ser o de Léa Garcia, quando diz que não se envergonha do seu passado humilde e que seus antepassados foram escravos. Imprime, neste momento, um tom de voz mais enfático e afirma que quem deveria se envergonhar acerca da escravidão deveriam ser os colonizadores, os imperialistas e, de forma alguma, os colonizados.

 

Esta conversa entre os atores e os diretores quanto ao papel do negro na mídia, principalmente no cinema, reflete uma questão fundamentalmente sociológica, uma vez que o negro, apesar de ser a grande maioria da população do país, não tem igualdades de acesso e oportunidades quanto à fatia branca da população. Os negros bem-sucedidos e bem-posicionados são caráter de exceção na nossa sociedade e dificilmente são mostrados pela mídia, a exceção dos jogadores milionários de futebol. Desta forma, as representações cinematográficas e de televisão, que muitas vezes buscam um cenário realista, utilizando a sociedade como espelho na composição e escolha dos personagens, dificilmente colocam um negro no papel de empresário bem-sucedido, por exemplo, mas sim como sindicalista reivindicante. Quanto às protagonistas femininas, existe uma questão estética a ser vencida, infelizmente, para que possamos ter uma negra como protagonista de uma grande obra, com raras e honrosas exceções. Isto porque nosso modelo de beleza ainda é o modelo europeu, daqueles que nos colonizaram, qual seja: pele alva, olhos claros, cabelo liso e feições delicadas; razão pela qual os negros, ainda que possuam uma inegável beleza, não satisfazem estas características.

 

Não é à toa que existem atualmente cotas para a população negra ter o direito de acesso à universidade pública e gratuita, forma encontrada pelos legisladores para inserir parte da população negra nos bancos acadêmicos. Esta segmentação talvez seja necessária, mas reducionista, quando na verdade a sociedade deveria oferecer oportunidades e condições igualitárias a toda sua população, ao invés de imputar esta proteção aos mais desprotegidos.

Portanto, para que possamos ter os atores negros com igualdade de condições na mídia, se fazem necessários a quebra de preconceitos, a ruptura e o sepultamento dos modelos introjetados pelos colonizadores, ainda vigentes em nossa sociedade em pleno século XXI. EM QUATRO – A HISTÓRIA DE QUATRO NEGROS NAS TELAS, cumpre a importante função de quebra de paradigmas e tem um papel, antes de mais nada, didático, frente às novas gerações que estão se formando.

Matéria original: RUPTURA DE PARADIGMAS

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