Ruth Gilmore discute encarceramento em conversa com Sueli Carneiro

Encontro promovido na sede de Geledés com a abolicionista penal norte-americana contou com uma plateia de especialistas na temática

FONTEPor Kátia Mello - katiamello@geledes.org.br
Diretoria de Geledés Instituto da Mulher Negra com Ruth Gilmore/ Foto : Sheila Leoneli

O auditório da sede de Geledés-Instituto da Mulher Negra, em São Paulo, estava lotado na quinta-feira, 17, para ouvir a conversa entre Ruth Wilson Gilmore, abolicionista penal norte-americana, diretora do Center for Place, Culture and Politics e professora de geografia em Ciência das Terra e do Ambiente na City University em Nova York, e Sueli Carneiro, fundadora e coordenadora de Geledés. Ruthie, como é conhecida, é uma das maiores autoridades em geografia carcerária no mundo e veio ao Brasil lançar seu livro ‘Califórnia Gulag’.

Em suas perambulâncias pelo território nacional, a pesquisadora aproveitou para conhecer pessoalmente organizações brasileiras atuantes contra o racismo e o sexismo, como Geledés. O debate colocou na pauta as prisões, a crise do capitalismo e o abolicionismo penal, temas tratados no último livro de Ruthie. O encontro foi intermediado por Juliana Borges, ativista e autora do livro “O que é encarceramento em massa”.

Dina Alves, advogada abolicionista/ Foto Natália Carneiro

A plateia, inclusive, contou com a presença de vários especialistas, que contribuíram para aquecer as discussões. Logo no início do evento, Dina Alves, ativista negra e também abolicionista penal, citou a frase de Sueli de que as “mulheres negras são as últimas da fila depois de ninguém” ao questionar sobre o lugar da histórica invisibilidade dessas mulheres na sociedade. “Quando se olha para o sistema prisional e, pelo que tenho acompanhado de perto, se as mulheres negras são a última da fila depois de ninguém, no sistema punitivista elas são a primeira da fila. Elas estão no lugar da hipervisibilidade da morte, do encarceramento, numa rede visível de punição não só em relação à família, mas à toda comunidade”, afirmou Dina. A ativista também mencionou a situação dos jovens negros no chamado Sistema Educacional Socioeducativo (SINASE), classificado por ela como um “regime patriarcal e racista”.

Gisele Brito, coordenadora da área de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto Peregum/ Foto Natália Carneiro

Já Gisele Brito, coordenadora da área de Direito a Cidades Antirracistas do Instituto Peregum, também na plateia, disse à Ruthie que a gentrificação é uma problemática racial no Brasil. Ronaldo Matos, sentado ao lado de Gisele, contou sua experiência na atuação do Desenrola E Não Me Enrola, organização de jornalismo periférico, criada em 2013, da qual é cofundador. Ele comentou sobre a atuação do Clube de Mães no Jardim Ângela, bairro periférico de São Paulo de onde vem.  

Ao responder às provocações da plateia, Ruthie afirmou que já rodou pelo Brasil, África do Sul, Europa, Estados Unidos e Canadá e, segundo ela, onde houver pessoas pretas e brancas pobres é preciso haver agrupamentos para combater a invisibilidade das mulheres negras, temática abordada por Dina. Sobre o encarceramento juvenil, a pesquisadora disse que é preciso falar sobre educação. “No mundo contemporâneo, muitas pessoas têm pensado a educação como um caminho particular para a vida e, vocês sabem muito bem que o fato de a educação ensinar para transgredir, ela pode não ser um caminho que leva a um diploma, mas a pensamentos críticos e de consciência”.

Ruth Gilmore em Geledés/ Natália Carneiro

A geógrafa também falou sobre o aumento da violência e a busca pelo encarceramento como uma solução para o problema. Neste contexto, Ruthie fez uma correlação entre a violência e o sistema. “O sistema não usa seu poder para infringir a violência, mas ele se torna poderoso ao infringir a violência. Ou seja, a violência produz poder. Aprendi isso há muitos anos com o antropólogo brilhante Allen Feldman”, contou ela.

Neste contexto, Ruthie destacou que “muitas pessoas, por estarem fartas e, por serem afligidas pela violência, acreditam que se houver um sistema de policiamento melhor será possível haver uma melhor sociedade”. Segundo ela, este pensamento convence negros, pobres e pessoas em situação de vulnerabilidade, como se o aumento da violência pudesse “ser apagado e como se fosse possível se produzir a calma”. “Eu costumo chamar essas pessoas de socialistas do estado policial”, declarou. E continuou: “Esse meu depoimento aborda as contradições nas comunidades, entre as mulheres, entre as mães. É o tipo de coisa que pede um alto nível de disciplina política, porque é muito sedutor pensar que a violência é a reposta para a própria violência”, atentou ela.

Ao abordar o livro ‘Califórnia Gulag’, Sueli Carneiro destacou que Ruthie “faz um esforço teórico muito grande para redefinir o conceito de classe na contemporaneidade, o que, segundo Sueli, é “uma engenharia complicadíssima”, especialmente em um contexto como o Brasil. “Você faz um alargamento enorme do conceito de classe para que possamos caber todas, todos e todes, todas as possibilidades e experiências de discriminação. Mas vivemos um contexto em que lutamos o tempo todo para afirmar a legitimidade da nossa luta racial e a resposta que a esquerda nos dá é que isso é um divisionismo da luta de classes, dos trabalhadores e das trabalhadoras. E pior, encontraram uma forma de limitar e isolar essa experiência histórica, de uma maneira a reduzir essa experiência que, em alguns casos é milenar, colocando um estigma sobre estas lutas como lutas identitárias, que enfraquecem a luta de classes. E, no entanto, você fala em luta de classes, usando o plural”, disse a filósofa e fundadora de Geledés. E Sueli continuou: “é muito interessante para nós, que vivemos o tempo todo esse confronto com o pensamento de esquerda, com um marxismo histórico, que não se abre para estas contradições, saber o que essa sua formulação contém”.

Ruth Gilmore em Geledés/ Foto: Natália Carneiro

Sueli Carneiro também pediu à Ruthie que analisasse o modelo Bukele, que, de acordo com ela, está sendo abraçado não somente pelo extremismo ascendente, mas também recebe certa simpatia de setores da esquerda. A filósofa se refere ao sistema prisional criado pelo presidente de El Salvador, Nayib Bukele, que atingiu altíssima popularidade ao reduzir a criminalidade em seu país construindo presídios de segurança máxima para onde enviou chefes dos principais grupos criminosos de El Salvador. Como parte de sua estratégia de combate ao crime, houve um estabelecimento sistemático de práticas de tortura, desaparecimentos e detenções arbitrárias, que obviamente ferem o Estado Democrático de Direito e afrontam as liberdades individuais.

O modelo prisional Bukele recebeu simpatizantes. O presidente do Equador, Daniel Noboa, por exemplo, tentou copiar essa fórmula e, como mencionou Sueli, um candidato à prefeitura de São Paulo esteve em El Salvador para acompanhar de perto o funcionamento desse sistema prisional.

Juliana Borges em Geledés/ Foto Natália Carneiro

A mediadora Juliana Borges foi além ao explicar que, em nome da segurança da população, Bukele lançou uma série de presídios provisórios que acabaram se tornando prisões permanentes. “Familiares não sabem sobre as pessoas que estão sendo presas. Crianças e adolescentes também estão sendo presos”, disse Juliana. E Sueli acrescentou: “eu não sei se a Califórnia tem algum presídio para 40 mil pessoas”, ao se mencionar o Centro de Confinamento do Terrorismo (Cecot), o maior presídio das Américas, inaugurado em fevereiro deste ano. Mas Ruthie admitiu desconhecer o sistema prisional instaurado por Bukele.

Sueli também questionou a pesquisadora estadunidense sobre como tem sido a recepção de sua tese sobre o capitalismo racial no universo do marxismo clássico. “Você fala que ele (o capitalismo racial) prescindiu do negro ou da pessoa não-branca. Que é anterior a isso, englobando pessoas antes de os brancos se tornarem brancos”, afirmou ela.

Sueli Carneiro em Geledés/ Foto: Natália Carneiro

E Ruthie respondeu a esta indagação de Sueli. “O conceito de capitalismo racial não é meu, apesar de me apoiar nele. Chegou a mim através do livro de Cedrick James Robinson, O ‘Marxismo Negro – A Criação da Tradição Radical Negra’, que está disponível no Brasil. Nesse livro, ele aborda algo chamado de o racialismo que formou o capitalismo. Em outras palavras, e agora elas são minhas, o capitalismo requer desigualdade e o racismo garante essa desigualdade”.

Ruth Gilmore em Geledés Instituto da Mulher Negra/Fotos: Natália Carneiro

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