Os afro-americanos enfrentam racismo sistêmico e institucionalizado como afrodescendentes, ao mesmo tempo em que não conseguem se identificar com nenhum país ancestral específico — e manter a língua, a cultura e o patrimônio que vêm com isso — porque a transmissão dessas raízes ancestrais foi proibida na escravidão.
Inicialmente, pensei que essa experiência fosse única da comunidade afro-americana. No entanto, depois de conversar com duas afro-latinas — mulheres negras no Brasil que lideram esforços poderosos para defender os direitos dos afro-brasileiros — percebi que a opressão e o genocídio cultural para aqueles que, como nós, descendem de africanos escravizados, é universal em toda a América.
O Racismo e o Sexismo que as Mulheres Negras no Brasil enfrentam
Apesar de 56% dos brasileiros se identificarem como negros — a maior população afrodescendente fora da África — a negritude no Brasil ainda é frequentemente associada à inferioridade.
Carolina Almeida, filósofa, internacionalista e cientista política, afirmou que, desde criança, os negros são criados dentro de um entendimento de que quanto mais estiverem afastados da negritude, melhor será para eles.
Ela diz: “Portanto, identificar-se como uma mulher negra ou como um homem negro no Brasil é um grande passo, na verdade, um grande passo social e, também, emocional a ser alcançado, porque estamos constantemente sendo persuadidos por tudo ao nosso redor de que ser negro é ruim, é feio e não é interessante.”
Em uma carta de 2022 para os bahá’ís na República Democrática do Congo, a Casa Universal de Justiça, o conselho mundial eleito da Fé Bahá’í, discutiu como essa “crise de identidade está diretamente relacionada à disseminação do preconceito.”
Leticia Leobet, cientista social com especialidade em antropologia, acrescentou: “Em termos do meu cotidiano, como brasileira, o impacto do racismo somado ao da misoginia é notável. E mais do que na minha vida cotidiana, isso impacta a construção do (meu) eu, minha identidade interior. Então, é uma ação que esvazia de qualquer perspectiva de futuro — quem você quer ser, o que você quer fazer e como você se vê no mundo. Você perde tudo isso. Somos forjados de uma forma a não acreditamos em nosso potencial, em nossas capacidades.
A experiência de Letícia reproduz os pensamentos difundidos pela Casa Universal de Justiça em uma carta de 2020 para os bahá’ís dos Estados Unidos, que enfatizou como o racismo suprime a capacidade dos indivíduos em realizar seu pleno potencial:
“O racismo é um desvio profundo do padrão da verdadeira moralidade. Ele priva uma parte da humanidade da oportunidade de cultivar e expressar toda a gama de sua capacidade e de viver uma vida significativa e próspera, enquanto prejudica a evolução do restante da humanidade.”
Carolina diz: “Nós, mulheres negras do Brasil, em especial, estamos sempre batendo nesse teto de vidro porque podemos ver, mas não podemos alcançar” devido às “barreiras sociais e políticas.”
Esses desafios impedem muitos de seguir profissões como medicina ou engenharia, e, como ela observou, “no Brasil, as mulheres negras estão na base da pirâmide social desde a escravidão.”
Assumir papéis de liderança na política é particularmente difícil, e essa luta está tão enraizada que afeta a mentalidade dessas mulheres, limitando a capacidade de se imaginarem em posições de poder. Carolina diz: “Eu nunca teria imaginado que estaria trabalhando dentro da ONU e a Comunidade Internacional Bahá’í nos ajudou muito nesse caminho.”
Como o Geledés Defende os Afro-brasileiros
Carolina representa o Geledés – Instituto da Mulher Negra nos mecanismos de revisão periódica da ONU e no G20, enquanto Leticia atua como assessora internacional da organização. Fundada por mulheres negras em 1988, o Geledés é uma organização não governamental brasileira que combate o racismo e o sexismo em todas as suas formas, garantindo o acesso igualitário aos direitos e oportunidades para pessoas de ascendência africana.
Em setembro de 2022, o Geledés obteve status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), permitindo que a organização acessasse vários mecanismos de direitos humanos e eventos especiais. Desde que obteve esse status, o Geledés pôde produzir de forma independente relatórios-sombra solicitados pelos comitês da ONU, focando especificamente nas necessidades urgentes das mulheres e meninas afrodescendentes no Brasil, que enfrentam as piores violações. Esses relatórios detalhados avaliam a situação atual e oferecem recomendações para ações que o governo brasileiro deve tomar. Notadamente, muitas dessas recomendações foram integradas às orientações oficiais fornecidas pelos comitês da ONU ao Brasil.
O Geledés aborda uma variedade de questões sensíveis, incluindo a fome e a pobreza, a violência contra afrodescendentes, encarceramento em massa de negros, disparidades na saúde pública, crises econômicas, mudança climática e liberdade religiosa. Além disso, a organização destaca o grave problema da violência contra mulheres e meninas afrodescendentes no Sistema Único de Saúde (SUS). A ONU frequentemente cita os dados coletados por Geledés para pressionar o governo brasileiro a tomar medidas contra o feminicídio.
O Geledés tem como consultor internacional Iradj Eghrari, ex-membro da Assembleia Espiritual Nacional dos Bahá’í do Brasil. Como bahá’í, Iradj reconhece que os objetivos de Geledés estão alinhados com uma das missões da Fé Bahá’í, que é ser “um defensor e protetor da vítima de opressão.” Ele expressa seu apoio ao afirmar que a “religião é transformar seus princípios espirituais em ação.”
Como Todos Podem Ajudar a Erradicar a Misoginia Racializada
( Misogynoir)[1]
Ao pensarmos em como podemos erradicar a misoginia racializada, essa interseccionalidade de racismo e sexismo que fere as mulheres negras no Brasil e em todo o mundo, vamos lembrar as seguintes palavras da Casa Universal de Justiça:
“Desconfiar, temer, odiar ou discriminar outra pessoa ou todo um grupo com base na etnia é uma doença espiritual. Também é uma praga que infecta as estruturas sociais e causa instabilidade. À luz disso, erradicar o preconceito étnico exige transformação tanto no nível individual quanto no ambiente social”.
Em nível individual, Iradj diz que “temos que empoderar as mulheres afrodescendentes para que reconheçam seu potencial.” Esse empoderamento “não é uma questão de apenas dar algumas ferramentas,” é abraçar, amar e estar presente. Em nível social, Iradj expressa a necessidade de “haver políticas estabelecidas” e mudar as “estruturas racistas.”
E completa: “Portanto, o que eu posso fazer como indivíduo é implementar ações. Esse pensamento de como posso estar a serviço de outro ser humano.”
[1] No original em inglês, Misgynoir. O termo Misogynoir foi cunhado pela professora e escritora Moya Bailey para descrever a forma específica de misoginia direcionada a mulheres negras, que combina tanto racismo quanto sexismo. Para expressá-lo em português, uma tradução adequada poderia ser “misoginia racializada” ou “misoginia contra mulheres negras”, enfatizando que é uma forma de opressão que une essas duas discriminações.