Salvador registrou 234 casos de abusos em 234 dias do ano

A Bahia lidera o ranking de denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. Até junho deste ano, o Disque 100, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), recebeu 1.980 denúncias

Por: Bruno Wendel

As mãos que balançaram o berço e que ajudaram nos primeiros passos foram as mesmas que despiram à força Bianca (nome fictício) quando ela tinha 12 anos. Desvirginada pelo próprio pai, a menina foi estuprada durante um ano, sempre à noite, na mesma cama que dividia com os irmãos. A mãe abandonou a casa ao flagrar um dos abusos e Bianca hoje cria o filho de 2 anos, fruto da relação incestuosa.

O caso de Bianca é mais comum do que se imagina. Em Salvador, todos os dias, uma criança – ou adolescente – é estuprada. De acordo com a Delegacia de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adolescente (Dercca), foram exatos 234 casos em 234 dias, de 1º de janeiro até esta terça (21).

Dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República colocam a Bahia em primeiro lugar no ranking nacional de denúncias de abusos, com 1.980 casos registrados de janeiro a junho deste ano (veja ao lado). Em Salvador, o caso mais recente aconteceu em Cajazeiras VII, na noite de terça-feira.

Uma menina de 10 anos estava na varanda de uma casa, enquanto a mãe conversava com a dona do imóvel e outras três pessoas na cozinha. Além do bate-papo, todos bebiam cerveja, com exceção do agressor, o vizinho Orlando Magalhães Portugal, 55, conhecido como Macarrão. Ao perceber que a criança estava sozinha, ele foi ao encontro da menina. Instantes depois, a mãe escutou o grito da filha. “Ela estava muito assustada. As mãos transpiravam muito e queria ir pra casa de qualquer jeito. Não entendi aquilo”, conta a mãe.

Em casa, a criança contou o que havia acontecido: “Ele apalpou o bumbum dela duas vezes, passou as mãos nas pernas e quando subiu para o órgão genital ela empurrou ele e me gritou”, contou a dona de casa, em prantos.

Segundo ela, a filha está traumatizada: “Ela não quer que ninguém a toque e hoje (ontem) não está falando com ninguém”, diz, revoltada. No mesmo dia, a população quis linchar o acusado. “Chamamos a polícia, que o livrou da surra.

Apesar de ele aparentar ter algum distúrbio mental, pois às vezes é muito agressivo, pra mim foi uma surpresa porque ele nunca desrespeito ninguém”, conta Gildaci do Carmo Mascarenhas, dona da casa onde aconteceu o abuso.

Orlando foi levado à Dercca, onde foi autuado em flagrante por estupro. A Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, considera estupro qualquer tipo de contato sexual com crianças e adolescentes, mesmo sem penetração. “Na maioria dos casos, o agressor tem acesso fácil às vítimas, normalmente é alguém da família, como o pai, irmãos, primos, padrastos, ou alguém que frequenta a casa, vizinhos e amigos”, explica a delegada Ana Crícia Macedo, titular da Dercca.

No final de semana, policiais prenderam Moisés da Cruz Pinto, acusado de abusar sexualmente de pelo menos seis garotos entre 12 e 17 anos. Ele se apresentava para os pais das vítimas como o responsável por um projeto apoiado pelo Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), que ajudaria a tirar os garotos de situações de risco social. Em seguida, marcava encontro com os garotos em imóveis alugados e sedava as vítimas para, depois, abusá-las.

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Em família
De fala mansa e olhar cabisbaixo, Bianca sente um misto de vergonha e raiva quando fala sobre o pai. Aquele que deveria protegê-la foi responsável por arruinar sua vida, palavras da própria jovem, que hoje tem 16 anos.

Aos 12 anos, ela morava com a família: ela, o agressor, a mãe e os cinco irmãos. Todos num casebre de um vão. Uma noite, ela acordou com o pai acariciando seu corpo. Ficou surpresa, mas nada fez. O pai a penetrou ali mesmo, sem que ninguém percebesse. “No início, não entendia, mas comecei a pensar: ele tem a minha mãe e uma outra mulher. Por que está fazendo isso comigo?”, conta a jovem.

Os estupros também ocorriam quando a mãe demorava a chegar em casa. “Então ele vinha bêbado ou fumado de tudo (maconha e crack). Ele dizia que ia me expulsar de casa, caso contasse para minha mãe”, conta a jovem. Mas não foi preciso Bianca recorrer à mãe. Ela flagrou a violência numa noite. “Ela nos abandonou com ele”, diz.

O tempo passou e aos 14 anos a jovem pariu uma menina, filha e neta do próprio pai. A gravidez já vinha causando estranheza aos vizinhos que denunciaram o caso à polícia. O pai responde pelo crime em liberdade, pois na ocasião não havia flagrante. “Quero que ele (pai) vá preso”, diz a jovem, hoje aluna do 5º ano do ensino fundamental.

Bianca hoje mora com os irmãos em local não divulgado por questões de segurança.

Vera Lúcia, 45, foi vítima de estupro quando tinha 10 anos. “Foi um vizinho. Sabe por que o caso ficou impune? Vim de uma família pobre e o agressor era de melhor poder aquisitivo”, conta ela, acrescentando que, além da vítima, é importante que a família também seja protegida. “A mãe e os irmãos normalmente são testemunhas e correm risco de morte”, diz.

Justiça
Daniela (nome fictício), 17, tirou do sofrimento a sede por justiça. “Quero ser juíza para poder prender essas pessoas que fazem o mesmo mal que fizeram a mim”, declara a jovem.

Aluna da 8ª série do ensino fundamental, Daniela foi violentada pelo pai. quando tinha 13 anos. “Além de fazer o que ele fazia, me batia direto”.
Daniela foi criada sozinha com o agressor e, segundo ela, os estupros ocorriam mais de uma vez durante o dia.

“Sinto raiva dele. O amor de pai e filha deixou de existir quando ele me tocou de forma diferente. Quero ele na cadeia”, diz, indignada.

O pai dela foi indiciado pelo crime e, como boa parte dos acusados, aguarda a decisão da Justiça. “Fora a situação de flagrante, a prisão depende de uma decisão judicial. A polícia recolhe provas materiais, testemunhais e o inquérito é remetido para a Justiça. Há casos em que a prisão é decretada dois, três anos depois do crime”, declara a delegada Ana Crícia, da Dercca.

Principais agressores são pessoas próximas
Para especialistas, é muito comum a figura do abusador ser um pai, padrasto, irmão mais velho, um parente próximo ou mesmo um vizinho. São pessoas que se aproveitam da inocência de menores incapazes de se defender sozinhos, violam a inocência, abusam da confiança e do poder a eles conferido de cuidar.

Os agressores, porém, agem de maneiras diferentes. Para a psiquiatra Rosa Garcia há uma diferença entre os agressores. “O pai alicia a criança, em alguns casos a seduz, mas não há agressão com murros, socos, chutes. A criança é coagida com ameaças de delação à mãe ou até a expulsão da família de casa. Quando o agressor não é da família, pode haver, sim, violência propriamente dita e até ameaça de morte contra algum parente, em especial a mãe”, explica.

Para o médico e psicoterapeuta Antônio Pedreira, os estupradores de crianças e adolescentes têm personalidade de psicopata. “São pessoas que praticam certos crimes e que não têm arrependimento nenhum do crime praticado. Isso é uma doença chamada sociopatia. É capaz de matar uma pessoa e depois ir consolar a viúva como se outra pessoa tivesse cometido o crime”, declara Pedreira.

Segundo o psicoterapeuta, os agressores normalmente foram criados em ambientes de repressão e a maioria deles já foi violentada quando criança. “Em outros casos, existem pessoas que têm uma inibição sexual muito grande e se aproveitam de pessoas mais fracas para avançar em suas relações sexuais”, conta.

Já a psiquiatra Rosa Garcia diz que o estupro é uma perversão sexual – “é o que o leigo chama de tara”. Segundo ela, é uma situação que foge da normalidade. Os casos são mais comuns no interior. “No interior, as pessoas são mais primitivas, encaram provavelmente a realização sexual diferente das sociedades sofisticadas. São pessoas que não tiveram condições de se aprimorar”.

Ela atribui tal situação à falta do conhecimento dos direitos humanos. “Se já tivéssemos os direitos humanos como matéria nas escolas, as crianças já teriam noção do que fazer no caso da primeira violência, onde procurar ajuda”, pontua. Os especialistas destacam que o número de denúncias é baixo porque as mães não denunciam por medo das ameaças e o adolescente, por sua vez, tem medo de que, ao denunciar, o abusador seja punido, o que traz sentimento de culpa.

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Bahia lidera ranking de denúncias
A Bahia lidera o ranking de denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. Até junho deste ano, o Disque 100, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), recebeu 1.980 denúncias do estado – 12% do total do país (16.080). Atrás da Bahia vem São Paulo (1.607 denúncias) e Rio de Janeiro (1.578).

O segundo estado do Nordeste, o Maranhão, aparece na quinta colocação nacional, com menos da metade dos casos da Bahia (882). Segundo dados do Ministério Público, as agressões que partem de desconhecidos constituem a maioria dos casos (31%), seguidas pelos abusos de pais (16%) e padrastos (14%). Na avaliação da secretaria, a estatística é piorada pelo baixo número de inquéritos instaurados. Na Bahia, a única delegacia especializada é a Dercca.

 

 

Fonte: Correio 24 Horas

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