Por Olívia Santana
Há 15 anos, após uma grande marcha que reuniu cerca de 30 mil pessoas em Brasília, celebrando o tricentenário de Zumbi dos Palmares, o dia 20 de Novembro foi oficializado Dia Nacional Brasileiro da Consciência Negra, através da Lei Federal nº. 9.125/1995. Em seguida, Zumbi é reconhecido herói nacional pela Lei nº. 9.315/1996. Eis aqui uma importante conquista na difícil tessitura da memória afrobrasileira.
Mas o mês de novembro é marcado também por outros grandes fatos históricos que fizeram a luta dos negros pela liberdade e por integração de forma valorizada ao projeto de nação. Destaca-se de maneira especial, a Revolta da Chibata, comandada pelo marinheiro negro, João Cândido, que está completando cem anos.
Sem dúvida, a luta de classes no Brasil produziu um panteão de ícones populares que, tanto Zumbi quanto João Cândido, se encaixam entre os maiores expoentes. Foi um fato extraordinário, um jovem marinheiro negro, ainda no começo do século XX, poucos anos após a abolição da escravatura, desafiar a alta cúpula do poder da Marinha de Guerra e comandar uma ousada revolta contra os castigos físicos impostos à tripulação, especialmente aos chamados homens de cor.
No dia 22 de novembro de 1910, o flagelo do marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes, que sofrera 250 chibatadas, suplantou a indignação dos seus companheiros de trabalho e fez com que a Revolta da Chibata, inicialmente planejada para 25 de novembro, eclodisse.
Na época, o recém-empossado presidente, Hermes da Fonseca, recebeu carta de João Cândido exigindo o fim dos castigos físicos na Marinha, entre outras reivindicações de melhorias na corporação, sob pena de os amotinados, liderados por aquele que ficou conhecido como “o navegante negro”, bombardearem a então capital do país. Trecho da carta diz: “Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os Oficiais, os quais, tem sido os causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da Pátria, mandamos esta honrada mensagem para que V. Excia. faça os Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilita”.
Nas águas da Guanabara, os navios Encouraçado Minas Gerais, Encouraçado São Paulo e Deodoro, da Bahia, além de outras embarcações, foram posicionados a apontar suas armas para a cidade do Rio de Janeiro.
Considerando que vários oficiais já haviam sido mortos e que o movimento se mostrou superior às tentativas de reação esboçadas pela Marinha, o governo negociou e aceitou as reivindicações dos amotinados. Entretanto, após a desmobilização da Revolta, no dia 26 de novembro, Hermes da Fonseca não cumpriu a promessa de anistiar revoltosos e expulsou vários deles. Após algum tempo, quando ocorreu um novo levante feito por fuzileiros navais, que não contava com a participação de João Cândido, o governo o acusou injustamente. João foi preso e punido severamente, até também ser expulso da Marinha. O velho navegante negro, que mudou para sempre a história da Marinha de Guerra, morreu em situação de pobreza e abandono, sem o necessário reconhecimento do Estado.
Hoje, como resultado da luta do movimento negro, e, mais amplamente, dos movimentos sociais que elevaram Lula à presidência, tivemos a possibilidade de ver concedida a anistia post mortem a João Cândido, através da Lei federal 11.756/2008. O Rio de janeiro ganhou do governo federal uma estátua do líder negro, que foi inaugurada na Praça 15. Também o primeiro navio montado na indústria naval na era Lula, foi batizado de João Cândido, pelo presidente da República. São gestos de reparação guiados por um inequívoco apreço aos heróis populares.
Assim, Zumbi e João Cândido são resgatados por um novo olhar sobre a história. Um olhar orientado pelo revolucionário desejo de enxergar para além do que a historiografia oficial nos impôs como verdade absoluta. Pena as câmeras do cinema nacional não capturarem a grandeza das sagas de nossos heróis negros. Exceção feita ao filme Quilombo, do diretor Cacá Diegues, produzido em 1984, cujo elenco traz nomes, como Antônio Pompeo, Zezé Mota, Grande Otelo, Tony Tornado e Jofre Soares. Nenhum outro filme sobre fatos históricos protagonizadas por negros no Brasil foi objeto de interesse da nossa indústria nacional de cinema para o circuito comercial, embora reconheçamos a existência de importantes produções independentes.
João Cândido, o nosso “mestre sala dos mares”, virou canção e deveria ocupar maior espaço na literatura e na indústria cinematográfica. Há que se fazer justiça histórica aos negros, romper o silêncio, produzir livros, “livros à mão cheia que faz o povo pensar”. Derramar tal saber nas mesas de nossos professores e alunos, nas telas das TVs tão dominadas por novelas ou minisséries italianas, que, de tão repetitivas, tornaram-se desinteressantes. Há que se valorizar todo o povo brasileiro, suas lutas, sua história e sua diversidade. Salve João Cândido, salve o centenário da Revolta da Chibata.
*Vereadora do PCdoB em Salvador, presidente da Comissão de Educação, Cultura, Esporte e Lazer da CMS
Fonte: Vermelho