Samira Soares, a resistência no ato de (re)escrever a própria história

A estudante de História usa suas próprias experiências em seu projeto de pesquisa e denuncia a herança escravocrata: “Por mais que a sociedade diga que a gente é marginal, temos que ser fortaleza e resistência.”

Por Clara Rellstab, do HuffPost Brasil 

Foto: JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Samira Soares é a 183ª entrevistada do “Todo Dia Delas”, um projeto editorial do HuffPost Brasil.

“A nossa escrevivência não pode ser lida como história para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”, escreveu a autora negra Conceição Evaristo. O neologismo criado por ela em 1995, junção das palavras escrita e vivência, procura dar conta daquilo que há entre o existencial e o literário.

A escrevivência tem um quê de autobiografia, vem da ideia de “escrita de si”, que leva em conta o fato de que a subjetividade de qualquer escritora contamina a sua escrita. A escrevivência de Evaristo é impregnada pela sua condição de mulher negra na sociedade brasileira.

Para Samira Soares, estudante de história de 23 anos, que toma emprestado para si o conceito quando é indagada sobre o trabalho que realiza na academia, a experiência que transborda em seus escritos é também influenciada pelos desafios que divide com Conceição Evaristo e tantas outras, mas, principalmente, daquilo que teve de aprender quando se mudou para Salvador.

Isso sempre norteou a minha vida: querer estudar para poder garantir um futuro melhor para a minha família.

Apesar de ter nascido na capital baiana, viveu a maior parte da vida no município de Lençóis, na Chapada Diamantina – a alcunha da região faz referência à grande quantidade de diamantes que lá eram encontrados no século passado. Neta de garimpeiro e de lavadeira, e filha de empregada doméstica, Samira sempre teve como perspectiva se mudar para a cidade grande quando chegasse a hora de se dedicar aos estudos.

“A gente que é do interior tem essa construção de que o melhor está na cidade grande. Isso sempre norteou a minha vida: querer estudar para poder garantir um futuro melhor para a minha família”, explica. Quando tinha 16 anos, fez parte de um projeto social na cidadezinha, e recebeu o convite de uma mulher que lá conheceu, de se mudar com ela para a casa de sua família em Salvador, sob a promessa de que lá conseguiria se debruçar nos estudos e ficar mais próxima de realizar o sonho de ingressar uma universidade pública.

Só que as condições não foram estritamente explicitadas na proposta. Quando chegou ao apartamento, lhe foi destinado o quartinho de empregada. Atividades domésticas também lhe foram designadas, fazendo com que o tempo para sair de casa e se preparar para o vestibular fosse zero. Remuneração pelo serviço? Em bom baianês: aoooonde. “Isso é algo muito comum no interior. Às vezes a gente ganha promessas de que a gente vai para a cidade grande para ter uma vida melhor, acaba na condição de empregada doméstica”.

Eu tinha o cabelo alisado, não me achava bonita, me achava inferior. Isso era muito complicado, porque eu acreditava que mesmo estando naquele espaço eu não pertencia a ele.

JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Samira quer ser professora de literatura ou de história na escola pública de Lençóis, para estimular outras tantas meninas.

Depois de dois anos nessa condição, fugiu, literalmente, de casa. Passou a dividir apartamento com outras meninas, e a trabalhar nos períodos da manhã e da tarde, para poder bancar um cursinho no turno da noite. “Era o cursinho mais barato de Salvador, que inclusive foi o que me preparou para entender o porquê eu tô nessa condição de vulnerabilidade, como é que eu posso reverter isso. Nesse período, dos 16 ao início dos 18 anos, sofri uma série de violências, que fizeram com que eu amadurecesse de uma maneira rápida, serviu para que eu saísse de lá e tivesse autonomia. Isso estruturou a minha vida”.

Além das aulas, o estudo por conta própria, em casa, deu resultado: passou de primeira para o curso de Bacharelado Interdisciplinar, na Universidade Federal da Bahia, sagrando-se a primeira mulher da família a ingressar no ensino superior. O curso fez com que Samira conseguisse desvendar ainda mais sua identidade.

“Eu entrei como cotista, e sempre coloco isso como fundamental na minha história, porque foi o meu ‘tornar-se negra’. Eu ainda tinha uma estética embranquecida, tinha o cabelo alisado, não me achava bonita, me achava inferior. Tanto pelo fato de, socialmente, não ter tanta condição, mas também por ter convivido num meio extremamente branco. Eu acreditava que mesmo estando naquele espaço, eu não pertencia a ele”, lembra.

Eu não queria seguir aquele ritmo, o que é condicionado para as mulheres negras: estar nas profissões subalternas.

Foto: JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
A filósofa Angela Davis é uma das inspirações de Samira para continuar em seu caminho.

Foi no início da faculdade que conheceu a hashtag #euempregadadoméstica, de Preta Rara. O movimento, iniciado no Twitter e que já tem mais de 160 mil seguidores no Facebook, surgiu para que os retratos das relações de apartheid racial e social dentro de nossas próprias casas, através da dinâmica entre patrões e empregadas, fossem relatados. A campanha reúne comentários acerca de experiência que ilustram a desigualdade e o destrato que essa profissão ainda carrega.

“Quando eu li os relatos daquelas trabalhadoras domésticas, eu fiquei pensando, ‘porra, eu sou neta de lavadeira, de garimpeiro, minha mãe é empregada doméstica, e eu quase fui’. Foi essa condição que eu vivi, mas eu não queria seguir aquele rito, que é condicionado para as mulheres negras: estar nas profissões subalternas. Eu queria entrar na universidade para mudar a história da minha vida e da minha família”.

Adentrou o Movimento Negro Unificado, e lá pode conhecer as trabalhadoras domésticas do sindicato da categoria em Salvador, como Creuza Oliveira, Milca Martins e Marinalva Barbosa. O trio dividia com Samira a mesma narrativa: vieram para a capital para trabalhar em casas mais abastadas, mas adotaram uma postura insubmissa, sem aceitar serem violentadas naqueles espaços. “Não que ser empregada doméstica seja algo ruim, mas minha mãe sempre disse que não queria isso para mim. Pela experiência dela, eu tinha em mente que eu tinha que seguir outro rumo”, conta.

Por ser cotista, negra, eu construo toda a minha intelectualidade nessa perspectiva de resistência.

Foto: JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Neta de garimpeiro e de lavadeira, e filha de empregada doméstica, Samira sempre teve como perspectiva se mudar para a cidade grande.

A partir do que sentiu enquanto leu os relatos da hashtag, acabou fazendo o seu próprio. “Foi muito doloroso porque eu fui escrevendo sobre a minha história e passava tudo na minha mente, tudo que eu vivi. Mas foi fundamental para que eu entendesse o que eu tinha que fazer na universidade, e eu demarco isso porque é o que eu estruturo toda minha vida acadêmica. Por ser cotista, negra, eu construo toda a minha intelectualidade nessa perspectiva de resistência”.

Lélia Gonzalez, Lívia Natália, Neusa Santos, Carla Akotirene, Denise Carrascosa, bell hooks, Audre Lorde, Maya AngelouAngela Davis, Conceição Evaristo e Grada Kilomba são só algumas das autoras negras que Samira tem usado para construir o seu próprio trabalho sobre as trabalhadoras domésticas no Brasil. “Quero confrontar essa construção de que ser intelectual exige essa postura de sujeito pesquisador versus objeto pesquisado. Eu faço da minha narrativa, da minha experiência de vida, uma ferramenta para construir vozes plurais de resistência”.

Enquanto termina o curso de História, que ingressou após encontrar em si todas essas inquietações, já mira um mestrado em literatura. O motivo? Voltar para casa. Samira quer ser professora de literatura ou de história na escola pública de Lençóis, para estimular outras tantas meninas a também ingressar na universidade: “para que elas entendam que tem esse papel de transformar toda a dor em luta, que a gente consiga de fato entrar nas universidades em uma perspectiva de tentar mudar o sistema”.

Eu faço da minha narrativa, da minha experiência de vida, uma ferramenta para construir vozes plurais de resistência.

Foto: JUH ALMEIDA/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
“Que a gente escolha onde estar, que não seja uma herança”.

“Eu construo a minha intelectualidade através dos meus, das pessoas que eu sei que falam sobre a minha experiência. Eu sou fruto de minha mãe Cristina Soares e minha avó Junilia Arcanjo. Quando eu leio Tornar-se Negro, de Neuza Santos, eu sei que ela está falando das experiências que eu vivencio enquanto mulher negra. Quando eu leio os poemas de Lívia Natália e de Conceição Evaristo, isso me fortalece para que eu consiga ter em mente qual caminho eu quero seguir. Por mais que a sociedade diga que a gente é marginal, temos que ser fortaleza e resistência, mostrar que podemos ser médicos, advogados, professores, e que também pode ser empregada doméstica se quiser. Que a gente escolha onde estar, que não seja uma herança”.

Transformar a dor em luta. Escrevivência.

Ficha Técnica #TodoDiaDelas

Texto: Clara Rellstab

Imagem: Juh Almeida

Edição: Andréa Martinelli

Figurino: C&A

Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC

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