Sangue de inocente não constrange políticos porque matar dá voto no Brasil 

O decreto do governo federal que prevê o uso de armas de fogo apenas como último recurso é frágil, pois pode (e será) questionado pelos estados no supremo Tribunal Federal dada a competência estadual para definir a política de segurança pública. Dito isso, constata-se que, infelizmente, as mortes por policiais que atiram primeiro e só depois verificam quem era a pessoa não constrangem políticos. Pelo contrário: no Brasil, matar dá voto.

Os governadores Cláudio Castro (RJ) e Ronaldo Caiado (GO) correram para as redes sociais para afirmar que a medida favorece o crime organizado. Reação política para antagonizar com a gestão Lula e, ao mesmo tempo, demagógica para excitar um naco naco da população com o discurso de que polícia competente é a que atira para matar sempre.

O que favorece, na verdade, o crime organizado é a falta de recursos e de vontade política que dificultam o uso da inteligência policial para asfixiar facções e milícias. Boa polícia é a que desmantela o crime organizado sem dar um tiro.

Isso sem falar da corrupção. Em estados, como o Rio de Janeiro, polícia, política e o crime andam de mãos dadas. Basta ver a joint venture erguida para matar a vereadora Marielle Franco, unindo um deputado federal, o chefe da Polícia Civil, um membro do tribunal de contas e um matador de aluguel.

Quase como uma trágica ilustração da necessidade de mudanças na forma de atuação das polícias, no mesmo dia em que o decreto foi publicado, a PRF atirou em um carro de uma família achando que seriam bandidos e, com isso, Juliana Leite Rangel, de 26 anos, levou um tiro na cabeça. Estava entre a vida e a morte enquanto escrevia este texto.

O governo federal pode impor a decisão à Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal e à Polícia Penal, sob responsabilidade do Ministério da Justiça. Para as demais, o decreto pode servir como condicionante para a liberação de recursos para essa área em estados e municípios. Governadores prometem ir ao STF contra a regra por conta disso.

O debate sobre o decreto deveria ser a sua eficácia, não o seu mérito. Poderia ser um ponto de inflexão para que o país tivesse, de fato, um Sistema Único de Segurança Pública que funcionasse com base em compartilhamento de informações (o que polícia estaduais são reticentes em fazer) e de procedimentos que protegessem a vida.


O problema é que em uma sociedade cansada de violência e de impunidade, o sentimento de justiçamento é maior que o de justiça. Muitos defendem que a punição seja feita, ali no momento da abordagem, para evitar que bandidos saiam livres. Querem que o cano do revólver do policial seja o investigador, o promotor, o juiz e o carrasco.

E se erros forem cometidos? Não tem problema, é dano colateral.

Na semana passada, mais um dano colateral entrou para a estante de absurdos nacionais. O Superior Tribunal Militar cometeu a façanha de absolver oito militares do Exército que fuzilaram o músico Evaldo Rosa dos Santos e reduziram a pena pela morte do catador de recicláveis Luciano Macedo, que tentou a ajudá-lo, a ponto de manter os assassinos em regime aberto.

O caso ocorreu em Guadalupe, zona oeste do Rio, em 7 de abril de 2019. Os militares dizem ter confundido o carro em que Evaldo estava com a família (sua esposa, seu filho de sete anos, uma afilhada, de 13, e seu sogro) com bandidos, metralhando-o. Luciano, um verdadeiro herói brasileiro, tentou salvar os ocupantes do carro e foi atingindo, morrendo 11 dias depois. Foram dados 257 tiros.

Outro caso que seria evitado caso o decreto federal fosse seguido seria a execução, com 11 tiros nas costas, de Gabriel da Silva Soares, pelo PM Vinicius de Lima Britto, após o furto de dois pacotes de sabão líquido em São Paulo. O rapaz estava desarmado.

Diante de uma polícia com baixo índice de resolução de crimes, casos como a execução de Gabriel são vistos como uma forma de vingança. Miliciana, violenta e injusta, claro. Políticos sentem-se à vontade de defender essa vingança enquanto uma parcela da população fizer o mesmo.

A carta branca para matar é o primeiro “santinho” distribuído por políticos pensando nas eleições.

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