Sartre, filósofo do direito?

Sartre: direito e política, de Silvio Luiz de Almeida, tanto revela uma contribuição ímpar de sistematização do jurídico na obra sartriana como extrai, a partir da melhor e mais radical tradição da filosofia do direito marxista, a mais original leitura a respeito dos engates e contradições entre o trajeto filosófico sartriano e a crítica ao direito.

Por Alysson Leandro Mascaro Do Blog da Boi tempo

Se durante grande parte do século XX Sartre representou um dos ícones maiores e plenos da intervenção da intelectualidade no mundo, atuando de modo filosófico e estético na política e na sociedade, um eventual refluxo da projeção de sua figura nos tempos neoliberais de virada e início de novo século serve então para ensejar um aprofundamento crítico e sereno dos estudos a seu respeito. Na filosofia, Sartre decanta para encontrar seu papel definitivo na história. No direito, contudo, o espaço sartriano sempre esteve por ser construído e, com esta obra, Silvio Luiz de Almeida dá uma grande contribuição a tal intento.

No século XX, o surgimento do pensamento de Sartre – dadas sua originalidade e falta de relação com a tradição conservadora estabelecida – encontrou a admiração e o atrativo à investigação por parte de alguns pensadores do direito. Embora poucas vezes tentada e realizada, uma abordagem jurídica a partir de Sartre despertou atenções e interesses de filósofos do direito do calibre de Nicos Poulantzas. No entanto, se os trabalhos que buscam relacionar Sartre com o direito sempre se caracterizaram como empreitadas parciais ou comprometidas com apenas algumas fases do pensamento sartriano, este livro surge e se destaca como a grande sistematização do direito em Sartre.

No que tange às possíveis leituras jurídicas de Sartre, elas são, de modo geral, enviesadas pelo ângulo de uma compreensão apenas fenomenológica existencial, descuidando-se, talvez com empenho proposital, de trabalhar com o momento de sua filosofia em que Sartre se encontra com o marxismo e se abre à política revolucionária. A leitura de Almeida vai mais longe, e ainda mais do que simplesmente trilhar por essa estrada pouco trabalhada. Seu propósito é identificar no pensamento de Sartre sua contribuição original para a crítica marxista do direito, ao mesmo tempo que desnuda os limites dessa tentativa. Trata-se de uma investigação crítica às possibilidades de seu próprio objeto.

Esta obra trabalha com três unidades temáticas fundamentais para a apreensão de uma reflexão sartriana a respeito do direito. De início, Almeida realinha a ontologia filosófica de Sartre, investigando a partir de suas obras inaugurais o tema central da perspectiva fenomenológica e existencial da liberdade. Nesse momento, abre-se uma discussão tanto dos novos fundamentos filosóficos trazidos por Sartre quanto de seus encaminhamentos iniciais a respeito da ética, da política e do direito. De tal fase do pensamento sartriano, o autor investiga inclusive textos raros e historicamente pouco estudados no que tange à possibilidade de compreensão de suas questões jurídicas.

Em uma segunda unidade, Silvio Luiz de Almeida avança na relação de Sartre com o marxismo. Trata-se de uma fase em geral descuidada pela investigação filosófica. A singular reflexão de Sartre a respeito do marxismo é posta em perspectiva pelo autor a partir da sua disposição em grandes eixos da própria tradição filosófica. De Hegel a Heidegger, as leituras sartrianas que relacionam marxismo e existencialismo são expostas em suas possibilidades, congruências, limitações e contradições.

É no vínculo entre direito e capitalismo que se revela a grande contribuição deste autor para o refinamento da leitura a respeito do direito em Sartre. Na melhor tradição de Marx e Pachukanis, Almeida busca captar a relação entre forma jurídica e forma mercantil. Aponta para uma possibilidade de tal reflexão a partir dos textos da fase pronunciadamente marxista de Sartre.

O autor problematiza a potencial contradição entre uma filosofia do sujeito em Sartre e uma filosofia que justamente reconhece no sujeito de direito o cerne da própria reprodução capitalista, como é o caso de Marx e Pachukanis. Em sua perspectiva filosófica, Almeida afasta o vínculo rápido e fácil que atrelaria Sartre a um último suspiro da filosofia da subjetividade moderna. O sujeito é compreendido em uma perspectiva ontologicamente indeterminada. Se ele é tomado como núcleo de sua filosofia, Sartre o faz como crítica ao sujeito, sendo exatamente isto que possibilitaria então, na visão de Silvio Luiz de Almeida, o caminho de uma crítica marxista do direito.

Dessa forma, o tensionamento promovido por Sartre no que tange ao sujeito, em busca de uma antropologia concreta, ficará explícito quando se procede à sua abordagem jurídica. Diz Almeida

O sujeito sartriano só pode ser compreendido no interior de condições materiais historicamente determinadas, ao mesmo tempo que produz e é produzido por tais condições. Disso resulta que ele jamais pode ser considerado o sujeito de direito que tem a possibilidade de determinar-se pela vontade; o sujeito sartriano não pode determinar-se, pois ele é ontologicamente indeterminado. Para o autor, essa liberdade indeterminada independe do querer, porque o homem é Para-si e, por isso, não é. Não tem direitos nem valores intrínsecos: tem projeto. Tal indeterminação é incompatível com o sujeito de direito, determinação jurídica que corresponde à função (na medida em que determina o homem por um conjunto de exigências do campo prático). De tal sorte que tanto Sartre como Pachukanis colocam-se no campo da crítica do sujeito e, mais especificamente, do sujeito de direito.

Continuando a problematizar a perspectiva jurídica na visão sartriana, o autor reconhece, no entanto, que a vinculação entre Sartre e a tradição mais plena do marxismo jurídico se dá, em tais questões estruturais, por uma espécie de leitura de possibilidades.

Em uma terceira unidade temática, Almeida trata a respeito de questões instigantes e peculiares do pensamento de Sartre, ligadas tanto à sua reflexão filosófica quanto às suas posturas políticas e aos combates aos quais se ligou em vida. Temas como o da relação entre legalidade e violência, cultura burguesa e justiça, democracia e revolução são enredados pelo autor no contexto maior da reconstrução do pensamento filosófico sartriano. Por fim, Almeida traz à tona uma reflexão de Sartre sobre a política – e também o direito – no caso do Brasil, tendo a ditadura militar como pano de fundo.

Não da França, mas do Brasil, cujas contradições capitalistas são mais expostas e as ilusões jurídicas e políticas menos inebriantes, é que se dá o ensejo de uma grande obra crítica de prisma radical a respeito do direito no pensamento de Sartre, que ora se publica. A leitura marxista de Almeida se consolida no aparato mais pleno da crítica do direito. Partindo das referências de Marx e Pachukanis, o autor descobre um Sartre desconhecido até mesmo dos próprios sartrianos no que tange às suas potencialidades e limites.

Silvio Luiz de Almeida está entre os mais destacados juristas e filósofos da nova geração brasileira. Sua dupla formação – em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie – faz dele um dos melhores leitores da filosofia do direito da atualidade. Sua dissertação de mestrado, por mim orientada – intitulada O direito no jovem Lukács: a filosofia do direito em “História e consciência de classe” e publicada pela Editora Alfa Omega –, empreende uma original leitura das questões jurídicas em um autor fundamental da história da filosofia marxista. Avançando nessa caminhada, Almeida agora abraça a totalidade do pensamento sartriano neste livro que é originalmente sua tese de doutorado, defendida na tradicional Faculdade de Direito da USP.

Filósofo, jurista, professor universitário e intelectual de destaque e intervenção na cultura e na sociedade – em uma trilha que foi a de Sartre –, este autor escreve páginas fundamentais para a compreensão filosófica de nossos tempos e para as lutas de transformação social.

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Onde encontrar?

Alysson Leandro Mascaro, jurista e filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP), em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da tradicional Faculdade de Direito da USP e da Pós-Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Publicou, dentre outros livros,Filosofia do direito e Introdução ao estudo do direito, pela editora Atlas, e Utopia e direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia, pela editora Quartier Latin e o mais recente Estado e forma política, pela Boitempo. É o prefaciador da edição brasileira de Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek, e da nova edição de Crítica da filosofia do direito de Hegel, de Karl Marx, ambos lançados pela Boitempo.

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