Sementes do mal, por Sueli Carneiro

Há tempos vinha me perguntando a que se devia a escolha do Brasil para chefiar uma missão de paz no Haiti. Interpretei como reconhecimento internacional de uma real expertise. Afinal o Brasil é um país que sabe “cuidar de negros” tanto que, vivendo eles, no Brasil, em condições assemelhadas às de seus irmão haitianos, comporiam, pacificamente, a democracia racial brasileira que tantos decantaram e que, se perdeu credibilidade no plano interno, ainda tem ressonância na visão internacional sobre as relações raciais no Brasil.

Por Sueli Carneiro

No entanto, um breve comentário feito por Eliane Catanhede em artigo sobre a ocupação do Exército dos morros cariocas obriga à inversão da suposta lógica, que me parecia subjacente à nossa presença militar naquele país, pois ele adiciona elementos inusitados à ocupação, que iriam além da idéia mais corrente de que esta missão poderia fortalecer a candidatura do Brasil a uma vaga no Conselho de Segurança da ONU. A colunista afirma, sobre a ocupação das favelas, que “a preparação da ação estava, inclusive, nos cálculos e planos estratégicos do próprio envio de soldados para o Haiti (…). Entre outros objetivos, está o de treinamento para atuar em conflitos envolvendo civis, como é o típico caso do Rio”.

Ao contrário de minha intuição inicial, da perspectiva colocada por Catanhede, o Haiti não é um ponto de exportação de técnicas disciplinares e de biopolítica desenvolvidas pelas instituições brasileiras sobre as populações negras, que poderiam ser aplicadas em negros haitianos, mas um campo de treinamento para o nosso Exército, de táticas de intervenção e contenção de conflitos urbanos.

Flávia Piovesan aponta a mudança de posicionamento das instituições de controle e repressão social do período da ditadura militar em relação aos tempos atuais, exemplificando com o problema da tortura que, segundo ela, no regime militar era “orientada por critérios políticos-ideológicos”, e (…) na era da democratização orienta-se fundamentalmente por critérios socioeconômicos com forte componente étnico-racial.” Avançando-se nessa percepção é possível supor que ela extrapola o problema da tortura, que se encontra disseminada nas práticas de instituições voltadas para o enfrentamento de diferentes conflitos.

Assim, ao ocupar os morros o Exército expõe a natureza das relações estabelecidas entre os morros e o asfalto na cidade do Rio de Janeiro – um estado de guerra civil não declarada resultante de conflito racial e de classe que, historicamente, só tem sido enfrentado na base da força, já que, para essas populações, vêm sendo sempre negadas ou postergadas políticas de inclusão e proteção social. No lugar delas, a resposta tem sido crescente processo de militarização. O que se coloca com as ocupações é a possibilidade de que o tratamento para as crescentes tensões provocadas pelo histórico abandono dessas populações venha a ser o assemelhado a situações de guerra civil: estado de sítio, supressão de garantias e direitos e sacrifício de inocentes.

O primeiro efeito colateral da ocupação foi a morte de Eduardo dos Santos, rapaz de 16 anos vítima de bala perdida e uma mãe e sua filha de 26 dias também feridas por disparos. Seguiram-se, segundo os moradores, violações dos direitos humanos elementares: o direito de ir e vir, imposição do toque de recolher e acusações de maus tratos por parte dos soldados. Uma líder comunitária relata: “Foi horrível. Eles chamavam trabalhadores de vagabundos e as crianças de semente do mal”.

Muito antes de Caetano Veloso decretar que o Haiti é aqui, esse pequeno país habita o imaginário de nossas elites. O temor do Haiti brasileiro foi uma das fontes de inspiração de inúmeras estratégias de repressão, contenção, domesticação e extermínio de negros no Brasil, pelo medo de que a maior população escrava das Américas viesse a reproduzir, em território nacional, a insurreição liderada por Toussaint L`Overture e Jean-Jacques Dessalines – dois heróis revolucionários que comandaram a derrota das forças francesas enviadas para sufocar a revolução, eliminaram a elite escravocrata e colocaram estado de alerta os senhores escravocratas dos demais países da América. Então, desde longe, o Haiti é aqui, potencial ameaça e, portanto, semente do mal.

Diante das acusações dos moradores por supostos abusos e violação dos direitos humanos, o Ministério Público Federal abriu inquérito civil público para investigar as denúncias. A resposta do comando militar do Leste foi a solicitação ao Superior Tribunal de Militar de proibição da investigação alegando que a questão é de segurança nacional.

Os canhões apontados para as comunidades têm, pois, o efeito simbólico de inscrever os que habitam os morros e favelas, bandidos ou não, no registro de inimigos da nação. É a metáfora final da exclusão.

 

 

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