Intocáveis, por Sueli Carneiro

No artigo “60 anos depois”, em que rememora Auschwitz, Roseli Fischmann lembra-nos que “Giorgio Agamben, cientista político italiano, vem desenvolvendo o conceito de homo sacer. Assim denomina o que pode ser morto e que, contudo, jamais será considerado sacrificado porque está liberado seu assassinato, sem restrições.”

Por Sueli Carneiro

Nessas palavras ecoa o fato recente que ainda repercute no noticiário: a anulação, pelos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, do júri que condenou o ex-coronel Ubiratan Guimarães a 632 anos de prisão. Ele foi responsável pelo massacre do Carandiru, em 1992, no qual morreram 111 detentos.

Há um complexo cipoal jurídico do qual nós, os leigos, somente nos damos conta quando da absolvição de alguém proeminente, que figura como réu de um crime que aos nossos olhos, eivados de senso comum, seria obviamente condenado. Deixa-nos a sensação de que esse aparato legal tão sofisticado e distante de nós foi construído para garantir a impunidade de gente graúda. Esse estranho e inatingível repertório foi novamente acionado pelos doutos desembargadores para reafirmar nossa percepção pueril de que o Código Penal é instrumento de punição apenas para os mais baixos na escala social.

Como perversão adicional, essa decisão faz parecer que o júri popular, a depender do caso, se reduz a uma farsa, e que pode ser anulado quando suas decisões avançam sobre os intocáveis e inimputáveis, que compõem as castas superiores de nossa sociedade. São uma espécie, às avessas, dos dalits, a casta inferior da sociedade indiana que não pode ser tocada.
Não sem razão, assim se manifestou um dos jurados diante dessa nova decisão: Estou me sentindo como se eu fosse um palhaço. Fiquei dez dias longe da minha família. Depois do julgamento, conversamos entre nós. E nós quatro, que fomos a favor da condenação, achávamos que tínhamos feito justiça (…) Eu me lembro que nos abraçamos, os quatro. E falamos: “nossa parte, nós fizemos’. Outro jurado afirma que “votou pela existência de excesso doloso na ação comandada pelo coronel Ubiratan porque viu “muita marca de bala” (…) Nós tínhamos coisas concretas na mão para condená-lo.

Diante dessa posição da maioria dos jurados, a jurisprudência criada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo estabelece, em favor das polícias, a legitimidade do excesso doloso no estrito cumprimento do dever.. Sem comparar com as vítimas do holocausto, de onde se originou o conceito, até porque vítimas não se comparam, mas procurando trazê-lo ao absurdo de nossos dias, com a decisão do TJ a porta está aberta para novos e maiores massacres sobre os que sejam considerados homo sacer, por quem considera que tem o direito de assim decidir sobre a vida alheia.

A juíza Maria Cristina Cotrofe Biasi, responsável pelo julgamento que condenou o coronel em primeira instância, teria qualificado a decisão dos desembargadores com os devidos adjetivos – o que já lhe rendeu ameaças de processo por dano moral da parte dos desembargadores responsáveis pela absolvição do coronel.

No caso da chacina do Carandiru, os presos sob a custódia do Estado foram mortos. A Justiça condenou o Estado por essas mortes. Porém, com a decisão do TJ estamos diante de um ato praticado pelo Estado sem que haja um agente desse Estado que possa ser por ele responsabilizado, já que o comandante da ação teve anulado o júri que o condenou. Temos então um Estado, um ser abstrato que, com suas mãos invisíveis, mata 111 pessoas. Se não há um réu, pode-se vir a decidir pela não existência do crime. Então, talvez o próximo passo da Justiça seja a suspensão das ações indenizatórias por dano moral às famílias dos detentos mortos, das quais apenas oito já obtiveram a irrisória reparação passados 13 anos da chacina.

Mas, se da perspectiva dos desembargadores não é possível convalidar o júri que condenou o coronel, pode-se cogitar outras hipóteses de responsabilização, posto que o caso exige, como afirma Adorno, uma “ética de responsabilidade” endereçada ao sujeito com o poder de ordenar a ação sem o qual, nesse caso, a execução não seria possível. No Tribunal de Nuremberg, que julgou os crimes praticados pelos nazistas, um dos réus, o almirante Karl Doenitz, defendeu-se com o argumento de que a culpa deveria recair sobre os políticos responsáveis pela guerra e não sobre os militares, seus executores. No caso do Carandiru, talvez fosse a hipótese de responsabilizar aquele que era o comandante-em-chefe das forças policiais que perpetraram o ato, o governador do Estado.

 

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