“Separar as crianças de suas mães em situação de rua não resolve. Só fará com que não as vejamos nas ruas, uma situação que incomoda.”

Enviado por / FonteKátia Mello

Artigo produzido por Redação de Geledés

Históricas dramáticas de separações de crianças e mães em situação de rua acontecem em nosso país, mais especificamente na cidade de São Paulo, como relata a pesquisa recém-divulgada “Primeira Infância e Maternidade nas ruas de São Paulo”, coordenada pela antropóloga social e especializada em Direitos Humanos pela USP, Janaína Dantes Germano Gomes. O levantamento é coletivo, fruto do esforço das integrantes da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (Faculdade de Direito da USP), em parceria com o Grupo de Trabalho Ceres-Maternidades da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e o Instituto Alana. Ao escutarem as mulheres em situação de rua e as trabalhadoras nos serviços públicos e no judiciário, a pesquisadora e sua equipe constataram uma alarmante ruptura dos vínculos dessas mulheres com seus filhos e filhas. O Censo Municipal da População em Situação de Rua de 2015, o último realizado, apontou 15.905 pessoas em situação de rua, sendo 7.335 nas ruas e 8.570 em situação de acolhimento. Destas, 2.326 foram identificadas como do sexo feminino. Em relação à idade, o censo contabilizou 403 crianças (0-11 anos) e 102 adolescentes (12-17 anos). Porém, os relatos dos pesquisadores são de que esses números podem ser muito mais expressivos.

Nesta entrevista à coluna Geledés no debate, Janaína descreve falhas graves no atendimento às grávidas e mães em situação de rua, indicando também quais deveriam ser as políticas públicas para melhor atendê-las.

Otavio Gomes

Geledés – Como se deu a iniciativa de realizar essa pesquisa?

Nosso grupo é bastante feminino, com muito mais alunas que alunos. Em 2015, firmamos parceria com o Instituto Alana, interessado em compreender o fenômeno das crianças em situação de rua. Aliamos isso ao interesse de gênero de nosso grupo, abrindo nossos horizontes para as mulheres em situação de rua. A partir daí, observarmos que mães com crianças em situação de rua, e gestantes, encontravam-se em condições muito peculiares. Estávamos diante de denúncias de acolhimento das crianças sumariamente, e começamos a investigar esse fenômeno. O acolhimento de bebês das mães em situação de rua, usuárias de drogas ou não, naquele momento, estava ganhando visibilidade em diversas cidades do país.

Geledés – Como a pesquisa pode impactar em novas políticas públicas?

Parte da justificativa da separação desses bebês de suas mães é a incapacidade do estado, e das políticas públicas, de atendê-las e cuidar para que a criança tenha seus direitos atendidos. São diversas iniciativas públicas votadas às mulheres, mas com diversos desafios, entre eles a dificuldade de articulação entre si; a falta de vagas e recursos de acompanhamento contínuo em todos os serviços; a dificuldade do cuidado com pessoas usuárias de drogas, e mulheres em especial, e especialmente a falta de políticas que trabalhem com a redução de danos. Existe ainda a estigmatização dessas mulheres por diversos setores sociais e de atendimento; o autoritarismo de decisões médicas e judiciais que muitas vezes afastam mãe de seu bebê, mesmo com as equipes de acompanhamento das políticas públicas entendendo que a mãe pode ser amparada. As políticas têm definições rígidas que impedem o acompanhamento transversal e multidisciplinar dessas mulheres: se ela muda de território, se ela tem diferentes condições peculiares, os serviços têm dificuldade em lidar com elas. A lógica do encaminhamento não se mostra suficiente para atendê-las. Na verdade, não se mostra suficiente para atender nenhuma situação complexa.

“Se quisermos cuidar da questão social em nosso país, precisamos ser criativos e pensar em novas formas de cuidado, tratamento, desenho de políticas, que não combinam com soluções rápidas, com terceirização de profissionais, com desmonte dos serviços”.

Geledés – No levantamento, uma psicóloga define que as mulheres em situação de rua são quase números.

Essa invisibilidade ocorre dentro dos processos judiciais. Muitas vezes os casos são judicializados sem os dados das mães, ou ainda nos casos em que a mãe sequer aparece nos processos. Tivemos acesso à uma bebê, por exemplo, que foi encaminhada ao acolhimento institucional por meio da vara judicial com a mãe amamentando a criança no hospital. A mãe passou a gestação toda entre recaídas com o uso de drogas e o juiz entendeu que a amamentação oferecia risco para a criança e a proibiu de amamentá-la sem respaldo médico. Segundo a cartilha do Ministério da Saúde, após 24 horas a mãe pode amamentar se não usar nenhuma substância. A Justiça proibiu também porque a criança seria acolhida e o serviço de acolhimento infantil não dispunha de capacidade para atender a mãe que deveria estar lá o dia todo para amamentar a criança. Ou seja, o serviço não pode se adaptar para atender as demandas daquela família. Isso é uma inversão na compreensão dos direitos da mãe, da criança, e da finalidade do serviço público, afinal, o objetivo do acolhimento é a proteção. E nada mais protetor do que o cuidado conjunto, que a manutenção dos vínculos. É nesse sentido que a psicóloga se refere à essa mulher como um número. A ênfase é no cuidado com o bebê, e nessa lógica de atuação, a engrenagem se move no sentido da separação, da destituição, e até mesmo da adoção dessas crianças.  

Geledés – A pesquisa conclui que é muito difícil quantificar as crianças em situação de rua. Por favor, explique.

Os fatores que levam essas crianças às ruas são diferentes do fenômeno que estudamos da separação entre mães e bebês logo ao nascimento, na primeira infância, que está mais ligado ao alto número de crianças abrigadas. A ânsia por “retirar as crianças das ruas” para que elas não “virem” essas crianças mencionadas na sua pergunta, faz com que, muitas vezes, as separemos de mães que poderiam ter condições, uma vez amparadas, de exercer a maternidade responsável. Aí está nosso foco.

Geledés – Como é a infância na rua e quais seus impactos na vida dessas pessoas?

Não consigo informar isso, pois não atuamos com crianças diretamente nas ruas. O que posso dizer é que muitas mulheres têm longas trajetórias em situação de rua, lutam para criar seus filhos nas ruas como catadoras, como coletoras de material. É difícil definir o que é “estar na rua”. É estar abrigada? É morar em uma ocupação, em um barraco? A vida na miséria impacta o destino dessas pessoas. E elas possuem infinitos talentos, aptidões, mas as ofertas de trabalho são sempre os subempregos. Essa mão de obra é, inclusive, altamente explorada para descarregar materiais, limpar áreas. Sobre as trajetórias das crianças, temos nos dado conta que muitas das mulheres abrigadas estiveram em situação de rua ao longo de suas vidas. Portanto, estamos aqui falando de condições transgeracionais de pobreza e sofrimento. Separar as crianças das mães em situação de rua não resolve. Só fará com que não as vejamos nas ruas, uma situação que nos incomoda mais do que ver mulheres, idosas, idosos, homens adultos em sofrimento e em situação de rua.

“Dá para imaginar todo dia se dirigir a um local para tentar uma vaga, sem saber onde irá dormir à noite, carregando todas as suas coisas com você?”

Geledés – No relato, aponta-se baixíssima integração dessas crianças em situação de rua às suas famílias. Por que isso se dá?  

Exatamente pela dificuldade de políticas públicas de longo tempo de acompanhamento, pautadas em longos períodos de cuidado, de vinculação, de articulação para o acesso a direitos. A separação atende a diversos anseios e é uma “resposta rápida” para evitar que “a criança cresça nas ruas” ou se relacione com o tráfico de drogas, por exemplo. O tempo do processo judicial, do atendimento médico, do atendimento das políticas públicas não é o tempo de vida dessas pessoas. Aliás, de nenhuma pessoa e sabemos disso. Então por que elas precisam “se adaptar aos processos?”. Se quisermos cuidar da questão social em nosso país, precisamos ser criativos e pensar em novas formas de cuidado, tratamento, desenho de políticas, que não combinam com soluções rápidas, com terceirização de profissionais, com desmonte dos serviços. E isso pode ser simples.

Geledés – Como deve ser feito, então?

Um profissional que consiga acompanhar integralmente essa mulher, que possua recursos, encontros multidisciplinares de discussão de casos, encaminhamentos que realmente funcionam. É preciso levar em conta as peculiaridades dessa pessoa, entendendo que ela não tem dinheiro para pegar o ônibus, que pode precisar de alguém que vá com ela até o fórum, que não tem roupa para se apresentar, são as formas de cuidados que precisamos. As pessoas são cuidadas aos montes, “como números” (novamente) e os cuidados individuais não são vistos ou possibilitados. E isso acarreta em sofrimento até aos profissionais que atendem diante de sua impotência em auxiliar a transformação dessas vidas.

Geledés – Não existem abrigos com especificidades voltadas às gestantes. Por quê?

Existem abrigos para mulheres, com ou sem filhos, com vagas escassas. Não há controle da fila de espera, não conseguimos quantificar a demanda. Dá para imaginar todo dia se dirigir a um local para tentar uma vaga, sem saber onde irá dormir à noite, carregando todas as suas coisas com você? Então, existem vagas, mas são poucas, e pela ausência de uma lista clara, mal sabemos quantas são as pessoas que procuram e não conseguem os abrigos. A ausência de cuidado está na peculiaridade. Nesses abrigos as pessoas têm teto, comida. Mas são em sua maioria espaços amplos. Mulheres idosas e mães de crianças pequenas, de variadas condições de saúde física, mental, todas cuidadas pela mesma diminuta equipe. Todas sob a premência de “perderem a vaga”, de terem que dar um jeito para morar em outro lugar, de conquistarem um emprego, de reconstruírem seus laços. São vidas vulneráveis.

Geledés – E como deveria ser?

As políticas de cuidado com a população em situação de rua preconizam espaços pequenos voltados ao cuidado individual, voltados à construção da autonomia, mas não temos isso. Os espaços que conseguem ser pequenos e de atendimento específico, multidisciplinares e de maior permanência obtêm melhores resultados. Se a mulher tem problema com uso de drogas, e está gestante, se é lésbica ou bissexual, se sofria abuso, se tem um companheiro. Em nenhuma dessas situações vemos o cuidado individual necessário. Se a mulher, por exemplo, precisar ser internada por algum motivo, o abrigo, ou as mulheres que convivem com aquela família, não podem cuidar das crianças, que precisarão ser transferidas para um novo abrigo, apenas infantil. Os vínculos são transferidos e novas rupturas acontecem. Essas vidas são permeadas por rupturas.

Geledés – Existe resistência em dar acolhimento às famílias homoafetivas?

Esse é um exemplo da dificuldade em dar atendimento individualizado: duas mulheres que se relacionem e estão abrigadas juntas. A regra do abrigo é para mulheres com ou sem filhos, e não famílias – que deveriam ser atendidas por outro abrigo, cujas vagas são ainda mais escassas. Mas e se a família se formou no abrigo? A resposta é “não pode namorar aqui” ou “não pode ficar no mesmo abrigo”. Ou seja, ou as pessoas se adaptam integralmente aos serviços, ou elas não serão atendidas. Isso é o oposto dos serviços demandados pelas pessoas que não se encontram em vulnerabilidade social. Não somos números, somos cidadãos. E essas pessoas são tratadas de forma diferente por toda a população.

Geledés – Como é um parto de uma grávida em situação de rua e quais as consequências para os bebês?  

Ouvimos narrativas de que o SAMU, de forma geral, não atende as pessoas em situação de rua. As mulheres que querem atendimento hospitalar no parto acabam recorrendo a algum conhecido, a um funcionário do metrô para a levarem ao hospital. Até mesmo a polícia as leva. Algumas socorridas pelos serviços de acolhimento. Há bebês que nascem em diversas condições de saúde.

Geledés – É frequente a separação de mães e bebês ainda nas maternidades e a pesquisa aponta alguns traumas para essas mulheres. Há relatos também de gestantes que para não serem separadas de seus bebês fogem para outras regiões da cidade, provocando, muitas vezes o parto nas ruas. Como se dá essa separação e como solucionar essa questão?

As pessoas em situação de rua têm todos seus direitos violados, e nesse caso, inclusive as mulheres têm violado o direito de permanecer com suas crianças. Essa decisão é muitas vezes tomada pelos serviços de atendimento de saúde ou assistência que consideram que essa mulher não tem condições de exercer a maternidade tão somente porque é miserável e faz uso de drogas. A separação em específico que acessamos é aquela que ocorre logo após o nascimento.

Sob nosso ponto de vista, somos todos responsáveis pela ausência de condição das mães, e a separação não deveria ser a primeira alternativa. Espaços de cuidado de longa permanência, com articulação com a saúde, poderiam ajudar na questão. Estudos apontam que as questões afetivas e familiares podem sim ser um caminho para a saída das mulheres das drogas. Mas não temos políticas amplas de cuidado com as mulheres que usam drogas. Como podemos conceber como política de cuidado a retirada do bebê e o retorno das mães para a sua situação de vulnerabilidade? Como o cuidado com o bebê pode ser a separação sumária de sua mãe? Isso é uma violência que fazemos, como estado, como sociedade.

Geledés – Outro ponto importante apontado pela pesquisa é de que as crianças filhas de usuárias de crack são mais vulneráveis à negligência do Estado. Por favor, explique.

A mulher acaba de ter seu bebê e por motivos médicos afirma que usou drogas durante a gestação, preocupada com seu bebê. Essa informação é anotada, e é verificado se há ou não “risco psicossocial” por parte dessa mulher para com seu bebê. Existe a preocupação de “o bebê ir para as ruas”. Mas e a mãe? Ela vai voltar a morar nas ruas no puerpério? Subitamente, só se enxerga o bebê e o melhor para o bebê é, sem dúvida, estar em um abrigo, com comida, com teto, com cuidados. A mãe é vista como um risco para esse bebê, e especialmente, os serviços e profissionais têm medo de serem responsabilizados pelas instâncias judiciais por “terem deixado a mãe sair com o bebê” e optam pela notificação das varas da infância e ministério público. Em Belo Horizonte, houve uma portaria que obrigava os profissionais a notificarem todos os nascimentos de filhos de mulheres com histórico de uso de drogas!

Se a alternativa das mulheres for voltar às ruas com seus bebês, é claro que as separações vão continuar acontecendo. É preciso que os órgãos de justiça atuem para a adequação e ampliação da rede de cuidados para prevenção da judicialização, que pressionem os poderes executivos a exercer esse cuidado, que ajudem a rede de atendimento a funcionar, o que não ocorre.

Geledés – Qual deveria ser o procedimento com os bebês em caso de mães usuárias de drogas?

Deveria ser o mesmo para com mães com qualquer outra peculiaridade ou vulnerabilidade – como questões de saúde mental, saúde física. É preciso o cuidado integral com essa mulher, com análise aprofundada do caso em concreto. Não há nada que indique que a mulher usuária de droga não possa ser mãe. Existem muitas drogas – lícitas e ilícitas – e muitos tipos de uso. É preciso amparar, cuidar, auxiliar. E não atuar de maneira autoritária, baseando-se em generalizações sobre quem pode ou não permanecer com seu filho ou filha. É importante pensar comparativamente: e se a mãe usuária de drogas for da classe alta? O encaminhamento seria para a vara da infância? O encaminhamento seria para um médico, um psicológico, e a família seria acionada.

Geledés – Como funciona o Consultório na Rua, iniciativa surgida em São Paulo no ano de 2004?

O CNRua é um serviço de atendimento que busca tornar o sistema de saúde mais acessível a essas pessoas, integrando a pessoa em situação de rua com o sistema de saúde. Trata-se de uma equipe multidisciplinar que faz atendimentos de saúde nas ruas. Quando necessário, agendam os exames nas unidades de saúde, levam as pessoas, as abordam nas ruas. É um serviço de excelência, pois atua na peculiaridade das pessoas, buscando intermediar o acesso delas aos serviços de saúde, o que geralmente não ocorre. Não há como programar exames , por exemplo, para pessoas em situação de rua ou ainda prescrever uma dieta para uma pessoa que não sabe sequer se terá comida hoje. Essas nuances não são vistas, necessariamente, pelos profissionais da saúde. O que nos encanta nesse serviço é a possibilidade de esse seres humanos deixarem de serem “números” para serem pessoas atendidas pelos serviços. Em São Paulo, conhecemos profissionais muito engajados, que visam driblar os limites das políticas para fazer um bom trabalho.

Geledés – Para as mulheres em que era detectado o uso de drogas ou álcool existia o programa De Braços Abertos. Funcionava?

Segundo as narrativas de profissionais da área, o serviço era de excelência e capaz de se aproximar das pessoas usuárias que tinham mais dificuldade de acessar o sistema. Contudo, o serviço foi desmantelado no início da gestão Dória, como outras políticas positivas da cidade, gerando retrocesso em diversos sentidos. Em especial, as políticas que preconizam internações e abstinência mais afastam as pessoas do que produzem possibilidades de cuidado, sob nossa perspectiva.

RELATÓRIO PRIMEIRA INFÂNCIA

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