A escola brasileira como projeto de país

Pelos 8,5 milhões de quilômetros quadrados do Brasil cabem mais de 207 milhões de pessoas, que falam mais de 274 línguas, com variados sotaques. Que dançam jongo, carimbó e tango, comem feijoada, sushi e babaçu. Acreditam em Deus, em Iemanjá, em Tupã e, às vezes, em todos ao mesmo tempo ou em nenhum. Que se banham no Rio Negro, ou vivem no semiárido, em ocas, comunidades ou apartamentos. Se cabem tantos, por que caberia um só modelo de escola?

por  Ingrid Matuoka no Educação Integral

Este panorama tão diverso revela a necessidade de construirmos uma escola verdadeiramente brasileira, isto é, erguida e contextualizada a partir da cultura, história e demandas das comunidades locais ante a escola padronizada, pensada tantas vezes a partir de referências estrangeiras ou através da frieza de números.

Com a proximidade das eleições que decidirão as novas gestões que se iniciam em 2019, o momento atual é de discussão. O Brasil tem a oportunidade de refletir e escolher o projeto de país para qual caminhará – plano indissociável da escola pública.

Se este caminho começou a ganhar clareza em 2014 com a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), que determinou as diretrizes, metas e estratégias para a política educacional do País, o dispositivo chega ao seu quarto ano com apenas uma meta cumprida integralmente. Entre as medidas que colocam em risco sua implementação, está a Emenda Constitucional (EC) 95, que limita os gastos públicos nas áreas sociais como Educação e Saúde pelos próximos 20 anos, aprovada pelo governo Temer no final de 2016.

Somadas aos entraves de financiamento estão questões de ordem estrutural como a reforma do Ensino Médio e a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que apontam para a urgência de debater coletivamente os rumos da educação nacional para a construção de uma escola pensada a partir de nosso povo e história e comprometida com o desenvolvimento integral das crianças e jovens.

Escola brasileira: que educação é essa?

“A matéria-prima de uma escola brasileira é a cultura, o sentido de vida, a razão de ser e os quereres do povo”, responde Tião Rocha, educador popular.

Não se trata, portanto, de ignorar objetivos de aprendizagem ou de se criar uma escola do zero. A escola que desejamos está mais próxima de nós do que se imagina: bem ali, em cada um dos estudantes, professores e funcionários, e em todo o território e comunidade ao redor — no posto de saúde, nas praça e parques, pelas ruas que a cercam.

Em outras palavras, os caminhos para a escola brasileira passam pela garantia da participação de todos e todas na elaboração das políticas públicas, do currículo, do Projeto Político Pedagógico (PPP) e nas decisões do cotidiano escolar. Também por um quadro docente mais diverso, como aponta Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM.

“Contratar professores negros, gays, indígenas, quilombolas, faz com que a menina negra, o jovem gay, a criança indígena se sinta reconhecida e representada, para que saiba que não é uma estranha naquele lugar”, diz.

Educação inovadora é aquela contextualizada

Em certos casos implica, inclusive, em alterar calendários, período de férias, horários de funcionamento. Para muitas escolas ribeirinhas, por exemplo, é preciso adaptar o ano letivo às cheias e secas dos rios. Para algumas comunidades rurais, por sua vez, adaptações devem considerar os longos deslocamentos dos professores, estudantes e funcionários.

Mais do que isso, é preciso olhar para estratégias pedagógicas disruptivas e pensar um currículo que faça sentido para os objetivos de vida daqueles alunos. É por isso que certas escolas indígenas oferecem disciplinas de engenharia de pesca — ainda que este não seja um conteúdo previsto em avaliações de larga escola.

“Uma educação brasileira não pode perder nenhum brasileiro. Tem que atender a todos, sem exceção, com o compromisso de garantir a forma e o ritmo da aprendizagem dessas pessoas. Tem que se apropriar do sentido de ser deste País”, defende Tião Rocha.

Importância do diálogo

Mas para saber do que nossas infâncias, juventudes e educadores necessitam, é preciso diálogo. Foi conversando com 30 professores de diferentes etnias indígenas que André Lázaro, pesquisador da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), aprendeu que eles não querem “ser incluídos” no atual modelo de escola se isso significar uniformizá-los e o desrespeito a seus direitos, saberes, sistemas de aprendizagem e línguas.

“Muitos indígenas afirmam que a escola é indispensável na preparação para uma mediação em uma sociedade muito desfavorável a eles. Mas o ideal é que essa aprendizagem aconteça em uma escola indígena, e não na típica escola de brancos onde há uma relação violenta. Nela, se criam crianças fora do mundo: elas nem se adaptam de volta ao mundo indígena e nunca se tornam inteiramente do mundo branco, porque este as discriminam”, diz André.

Conhecer nossas contradições para transformar

Se uma educação verdadeiramente brasileira tem que atender à diversidade, à força criativa e vibrante do País, à imensa sabedoria dos povos que o compõem, isso também passa por reconhecer e combater o racismo estrutural, a desigualdade, o sexismo e o autoritarismo entre nós.

“Ao mesmo tempo em que a escola deve responder aos desafios do tempo presente, de tecnologias e agilidade, sempre olhando para o futuro, incerto e de rápidas mudanças, ela deve estar ancorada no passado, que no nosso caso não é uma história fácil: é de colonização, escravidão, desigualdade, pouco respeito e muita luta. Esse desconhecimento de quem somos e por que somos é o maior desafio do Brasil hoje. Sem isso, fica difícil imaginar que país queremos ser”, diz Maria Thereza Marcílio, diretora da Avante – Educação e Mobilização Social.

Justamente por isso, a escola brasileira é, em primeiro lugar, um projeto de país. É o que defende Helena Singer, socióloga e educadora. “Ao investigar nossa cultura, encontramos nossos maiores problemas, e temos que assumi-los. Só assim criaremos perspectivas e possibilidades para um projeto de Brasil melhor, o que ainda não foi feito a sério.”

Dentre estes desafios a serem assumidos e enfrentados, Pilar Lacerda elenca a dívida histórica com a educação pública, os 40 milhões de adultos com baixa escolaridade, 10 milhões de analfabetos, mais de 2,8 milhões de crianças e adolescentes fora da escola, quase sempre por questões socioeconômicas.

Paula Froes:GovBa – O cotidiano de crianças de escolas das áreas rural e urbana apresenta diferenças que, quando compreendidas, ajudam a aproximar as realidades dos estudantes. Quilombo Pitanga dos Palmares/Caipora, em Simões Filho (BA).

A alma brasileira como norte

“Omitir-se em relação ao racismo, machismo e sexismo, é possibilitar situações de violência no espaço escolar”, alerta Suelaine Carneiro

Suelaine Carneiro, socióloga e integrante do Geledés – Instituto da Mulher Negra, lembra ainda que na escola as disciplinas costumam partir do ponto de vista do dominador e do ocidente, e ignorar a contribuição de outros povos para a nossa formação. Muitas ainda resistem em abordar temas da atualidade, como as novas configurações familiares, identidade de gênero, orientação sexual e as decorrentes mudanças na legislação.

“Ao fechar os olhos para estas questões, a educação passa a reafirmar e perpetuar a hierarquias e noções de superioridade. Omitir-se em relação ao racismo, machismo e sexismo é possibilitar situações de violência no espaço escolar. Em lugar disso, a escola deveria oferecer formação de igualdade e respeito a todas as culturas e pessoas, oferecer o direito de conhecer o outro”, diz Suelaine.

Ela também alerta para o fato de que, sem isso, retira-se todo o aspecto de humanidade da formação de crianças e adolescentes.

Maria Thereza concorda. “As escolas que não olham para as questões culturais e sociais transformam essa riqueza dos seres humanos em mais pobreza, injustiça e desigualdade”, acrescenta.

Por isso, a importância da educação brasileira como projeto de país. “Para que ela não fique só no sonho quixotesco, ela tem que ser pensada como não foi feito ainda, ou seja, temos que começar a lutar e fazer. Como Eduardo Galeanodizia, você caminha na direção dela dez passos, ela anda mais dez passos. Você corre 100 metros em direção a ela, ela corre mais para frente. Não podemos dar uma pátria educadora, uma educação de alma brasileira como garantida e alcançada, mas é sempre um norte, uma direção para onde devemos caminhar sempre”, conclui Tião.

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