Separatismo e Xenofobia: a outra face da barbárie do capitalismo italiano

Em 1992 os analistas políticos contatados pelo Quirinale (Presidência da República) sentenciaram que os manifestos separatistas da Liga Norte nada eram que loquacidade patológica de Umberto Bossi e verborréia barata de Mario Borghezio. Dezenove anos depois a Liga Norte é o partido que em troca de reformas constitucionais aptas a transformar a Itália em um estado federativo mantém em vida o falido governo de Silvio Berlusconi. Reformas que visam embasar “constitucionalmente” o projeto separatista para depois poder finalizar o mesmo com uma proposta independentista.

Achille Lollo (ROMA) — Com muita dificuldade o ministro da Defesa, o fascista Ignazio La Russa (como ele mesmo reconheceu de ser no programa Annozero de Raí-TV2) conseguiu desviara para a Comissão Defesa do Parlamento o projeto de lei da Liga Norte sobre a “… necessidade de usar apenas moradores da Itália do norte no corpo especial dos Alpini…” (uma espécie de fuzileiros das montanhas). Porém, La Russa e os grupos da “direita nacionalistas” que integram o partido de governo PdL não puderam impedir que a Liga Norte apresentasse outro projeto de Lei para reestruturar o exército “… com a criação de exércitos regionais cujo caráter operativo deve corresponder as características dessas regiões…”.

Estes projetos de lei surgiram no momento em que o Parlamento votava a Lei sobre o federalismo fiscal que permite aos governadores das 19 regiões italianas e aos prefeitos dos municípios de introduzir um sistema fiscal local com novos sistemas de taxações, cujas verbas arrecadadas não são devolvidas ao governo central, mas ao local. Desta forma a Lega Nord dava por concluído o primeiro tomo do projeto separatista, sem que ninguém na oposição reformista apontasse por isso.

Pragmatismo de urubu

Poucos sabem, mas o urubu é uma das aves rapaces que mais paciência tem quando se trata de esperar a queda de sua presa, por isso quando as revelações da prostituta Ruby e o problema do lixo em Nápoles fizeram mergulhar o governo Berlusconi em uma crise profunda, apareceu no Parlamento o voto salvador da Lega Norte que, por isso mereceu o adjetivo de “Branco di avvoltoi” (Bando de urubus).

De fato, Ugo Bossi (o chefe da Lega) e os lideres das duas tendências majoritárias, a social-democrata de Roberto Maroni, (ministro do interior) e a conservadora de Roberto Calderoli, (ministro para a simplificação burocrática) se aproveitaram desse momento de crise para salvar Berlusconi com voto de seus 187 parlamentares exigindo, em troca, a aprovação da lei sobre o federalismo fiscal.

Uma lei que foi criticada pelo próprio partido de Berlusconi, o PdL, porque não transformava a Itália em um estado federativo, mas atribuía, apenas, poderes políticos aos governadores e aos prefeitos. Uma lei feita para agradar a Lega Norte que desta forma conseguia adiar o debate interno sobre a aliança com o falimentar governo de direita de Berlusconi.

É necessário dizer que Berlusconi e a Lega não tiveram muitas dificuldades em aprovar, em primeira instancia, na Câmera dos Deputados a lei sobre o federalismo fiscal porque na oposição – em particular no Partido Democrático – a resistência a esta lei foi pouco substancial, pouco organizada e, sobretudo, pouco unitária. Aliás, houve momentos em que, pareceu que setores do PD apoiavam a lei com a única diferença de que queriam que o texto de lei fosse o deles e não o da Lega. Por isso os debates nas TVs tratavam, apenas, de assuntos relacionados com a metodologia dos novos ordenamentos burocrático-fiscais. Nunca foram focados os conceitos políticos do separatismo que eles representavam. De fato somente agora os comentaristas admitem que a lei sobre o federalismo fiscal “… foi um perigoso anteprojeto da estratégia separatista da Lega Nord que o centro-esquerda devidamente ignorou na esperança de poder reconquistar seus antigos eleitores que nas últimas eleições votaram pela Lega Nord”.

O pragmatismo de urubu veio novamente à tona quando o governo pediu que os governadores das regiões se juntassem para resolver o problema do lixo da cidade de Nápoles. Foi a ocasião que as lideranças da Lega Nord esperavam para começar a apontar aos atônitos italianos: 1) a existência de uma Itália do norte que não queria partilhar mais suas riquezas com o Sul; 2) que não aceitava ordens do governo de Roma; 3) que se recusava de ser solidária com a prefeitura de Nápoles.

Com base esta decisão política amadurecida no “Bureau Político da Lega Nord” os governadores das regiões do norte se recusaram de receber uma parte do lixo que as descargas de Nápoles e da região Campânia não conseguiam mais processar. Esta foi outra manifestação de separatismo xenófobo que surpreendeu os italianos, sobretudo os reformistas do Partido Democrático. De fato a decisão da Lega Nord de negar solidariedade a cidade de Nápoles foi o ensaio para a ruptura da solidariedade nacional. Uma decisão perigosa que a Lega tomou para medir até que ponto e de que forma reagiria o establishment político italiano. Poucas vozes reagiram lembrando a Ugo Bossi que as regiões do norte, em particular o Veneto, tinham uma divida moral com as regiões do centro e do sul da Itália que intervieram quando o norte ficou alagado à causa das chuvas e depois pela ruptura das margens do rio Pó.

Questão setentrional

Antonio Gramsci, o heróico teórico comunista que o fascismo prendeu até sua morte, dedicou parte de seus estudos políticos ao Sul escrevendo o famoso livro “La Questione Meridionale” (A questão meridional) onde ao lado das analises sobre a exploração dos camponeses e o impróprio aproveitamento das terras havia um estudo profundo sobre as divergências socioculturais que codificavam as contradições da unificação da Itália.

Por isso a “Questão Meridional” permaneceu um dramático capitulo aberto na história italiana, inclusive a mais recente. Em função disso o teórico da Lega Norte, Gianfranco Miglio operou uma sofisticada manipulação histórica que depois o “chefão” Umberto Bossi vulgarizou afirmando: “… a colonização da Itália do Norte por parte do governo ladrão de Roma é feita para sustentar as etnias meridionais que nada fazem e tudo sugam do norte trabalhador e poupador…”.

É praticamente inexplicável como a Lega Nord conseguiu embananar os eleitores da Itália do Norte e ganhar seu consenso com a “Questão Setentrional” em base a qual a Lega admite que “… existe um projeto de colonização política e econômica do norte industrializado por parte do pobre e subdesenvolvido sul…”.

É necessário dizer que estas temáticas começaram a ser veiculadas e a ganhar espaço na mídia no momento em que o sistema político e partidário da primeira republica, em 1997, entrava em crise provocando o desaparecimento dos grandes aparelhos partidários da Democracia Cristã, do Partido Republicano, do Partido Liberal e por outro lado do Partido Socialista e do Partido Social-democrata, enquanto o Partido Comunista aproveitava disso tudo para enterrar a alma leninista e gramsciana do PCI para se candidatar a ser o novo partido do inter-classismo e da alternativa social-neoliberal.

Hoje a dita “questão setentrional” virou a página mais xenófoba do manifesto separatista apontando o Sul como único responsável do fosso inseparável que hoje – segunda a Lega Nord – dividiria a Itália do Norte da Itália central, meridional e insular.

Foi neste âmbito que as cidades administradas pelos prefeitos filiados a Lega Nord, com base as reivindicações sobre o estado federativo começaram a complicar a freqüência em suas escolas primárias e secundárias dos alunos filhos de imigrados, além de recusar em suas escolas primárias e secundárias os professores originários do Sul e do Centro que, evidentemente não falavam os dialetos locais e na voz tinham uma ligeira modulação meridional. Além disso, a Lega Nord, com o apoio da direita fascista conseguiu votar uma lei para financiar o “… patrulhamento das cidades e prender os estrangeiros imigrantes que quebravam a imagem da paisagem urbana…”. Assim no sábado e no domingo, milhares de “patrulhas” organizadas por fascistas e militantes da Lega Nord começaram a expulsar os imigrantes árabes e negros das praças e dos locais públicos. Atividades repressivas que ao receber financiamentos das Prefeituras permitiam a Lega Nord tornar visíveis seus aparelhos partidários e sua imagem política no território.

Racismo na Lega Nord

Nos anos sessenta do século passado o “Boom industrial” da Itália do Norte se deu por dois fatores: a) ser um produtor barato de tecnologia suplementar para as multinacionais européias; b) ter um a reserva inexaurível de força de trabalho barata, representada pelos camponeses desempregados do sul. Neste âmbito os jovens “terruns” (homens da terra) emigravam no norte da Itália nas mesmas condições em que seus pais haviam emigrado no Brasil e na Argentina, com a diferencia que no norte italiano os “terruns” eram tratados quase como estrangeiros apesar de ser italianos. Foi assim que em todas as grandes cidades industriais do norte surgiram os “guetos” com as famílias dos sicilianos, calabreses, de napolitanos enfim dos “terruns” do sul que vinham trabalhar nas fábricas, na construção civil e que nunca alcançaram a devida integração com as populações do norte que, por sua parte, reforçaram a cultura seletiva optando manter os “terruns” na devida distancia.

Com a globalização as pequenas e medias fábricas da Itália do Norte se tornaram detentoras de alta tecnologia o que permitiu se livrar da supremacia das multinacionais européias. Porém para ganhar os mercados internacionais precisavam de mão de uma força de trabalho barata e versátil que a Itália do Sul não oferecia mais. Assim pela metade ou até por um terço do salário pago aos italianos os empresários do Veneto, da Lombardia, do Piemonte, do Friuli e do norte em geral importaram rumenos, albaneses, ucranianos, marroquinos, argelinos, enfim todo tipo de mão de obra barata disposta a trabalhar longe dos sindicatos e com a boca calada.

O dato anacrônico dessa realidade é que os empresários que enriqueceram de forma assustadora empregando imigrantes clandestinos (extra-comunitários) foram os principais financiadores da Lega Nord e de suas campanhas contra os imigrantes islâmicos e de cor.

A Comissão Européia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) condenou várias vezes a Lega Nord e alguns de seus dirigentes por “… manifestas praticas de racismo e de intolerância religiosa…”, porém desde quando a Lega Nord se tornou o principal sustentador do governo Berlusconi e no momento em que promoveu politicamente as campanhas anti-islâmicas, com a dissimulada aprovação do Vaticano, as acusações se perderam nos relatórios que ninguém lê.

Achille Lollo é jornalista italiano, editor do programa TV “Quadrante Informativo”.

Fonte: Red por ti america

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