Na Semana do Professor, Geledés – Instituto da Mulher Negra – conta a trajetória de Lucineide Carvalho Silva, 59 anos, professora de Artes da rede pública de São Paulo e militante da educação antirracista há mais de três décadas. Lotada na EMF Capistrano de Abreu, no bairro do Itaim Paulista, Lucineide construiu uma carreira marcada pela afetividade e pela resistência cotidiana contra o racismo em sala de aula.
Os pensamentos da professora em muito se assemelham com os escritos da pensadora norte-americana bell hooks, especialmente de seu livro Sobrevivendo de Amor, em que se torna evidente a urgência de reconstrução dos vínculos afetivos rompidos pelo racismo. “Viver em um país racista é muito difícil, passar pelo racismo é muito difícil. Mas quero fazer com que uma criança não passe por aquilo que eu passei, que um adolescente não passe pelo o que eu passei, e que tenham autoestima e se sintam empoderados”, afirma.
Para Lucineide, o ato de educar é também um gesto de reparação e de amor político. Isso também evoca bell hooks ao refletirmos sobre como a ausência de amor e de reconhecimento do corpo negro é uma das feridas centrais da experiência do racismo, exigindo da pessoa negra uma força constante e uma “interface social pronta para lidar com a violência e a solidão”.
Em suas aulas, a arte é a ferramenta de libertação da professora. “A escola é o primeiro lugar que o racismo impacta na vida de uma criança. Então é muito importante que essa educação antirracista venha já na primeira infância, para que essa criança negra não passe por questões como a baixa autoestima”, diz ela. Sua prática pedagógica combina o afeto com o rigor crítico, fazendo da sensibilidade um campo de disputa política.
Em entrevista a Geledés, Lucineide desenha a evolução dos ensinamentos antirracistas no país e algumas transformações, como a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Ela narra como a formação docente e o contato com os movimentos negros transformaram sua atuação, em espaços como os coletivos, levando-a a criar o projeto Os Baobás Capistrano de Abreu, voltado à arte em uma perspectiva africana.
Ao longo da conversa, a professora refletiu sobre as lacunas da implementação da Lei nº 10.639/03, o papel das gestões públicas e a urgência de sensibilizar novos educadores. “Ser professora antirracista foi o meu melhor aprendizado, porque eu me encontrei enquanto mulher negra, entendi qual o meu lugar na educação, entendi a responsabilidade do meu trabalho”, concluiu.
Geledés- De que maneira sua trajetória pessoal influenciou seu trabalho de professora antirracista?
Foi um processo bem complexo. Quando comecei a dar aula, em 1992, ainda aprendia a ser professora. As pessoas olhavam para uma criança negra e por muitas vezes, a xingavam de macaco. As piadas racistas eram muito comuns nessa época. A partir daí, comecei a perceber a responsabilidade do meu trabalho. Porque eu, enquanto mulher negra que também já havia passado pelo racismo, não podia fazer intervenções pequenas. Eu precisava agir e não poderia só falar o que todo mundo falava: ‘não faça isso porque é feio’!
Geledés – Como foi sua formação inicial e o que mudou desde então?
Minha formação inicial se deu na rede estadual de ensino. Se aparecia um edital de formação antirracista, as pessoas me diziam: ‘isso é para você’. Entendia que era para mim, mas também ficava incomodada, porque eu pensava: ‘como só para mim? Não pode só eu trabalhar essa questão racial, não é?’ A gente ficava sabendo através dos colegas das formações, dos cursos, que eram oferecidos também pelo Estado ou pela Prefeitura. A Prefeitura de São Paulo é a mais forte nessa temática, exatamente por conta dos governos mais progressistas que por ela passaram. E fiz muita coisa até chegar à pós-graduação na Universidade Federal de São Paulo (Unefesp).
O ano da implementação da Lei 10.639 foi um divisor de águas na minha trajetória de educadora, porque fui convocada para as primeiras formações em DRE (cursos de capacitação de professores oferecidos pelas Diretorias Regionais de Educação). E a partir disso a minha vida mudou enquanto educadora.
Geledés – O que mudou com a Lei nº 10.639/03 que obrigou a adoção nos currículos oficiais do ensino sobre história e cultura afro-brasileira?
A partir de 2004, começaram a oferecer muitos cursos, e também chegaram às escolas livros de autores negros. E aí foi possível adentrar um universo em que fiquei muito encantada, ao começar a conhecer a história de nosso povo, ao olhar para os nossos ancestrais e admirá-los, entendendo o quanto que eles foram valentes, fortes, resilientes. Enquanto educadora, tenho uma responsabilidade muito grande em fazer com que todo mundo que passe pelas minhas aulas consiga dar o devido valor à essa população.
Geledés – Como trata do material escolar antirracista de maneira que seus alunos se interessem pelo assunto?
Eu sempre fiz de forma intuitiva. O primeiro personagem que conheci foi o Zumbi dos Palmares e eu o apresentava de forma enaltecida, pois foi essa pessoa que liderou os quilombos. Então, assim, comecei a trazer uma história que não era contada, porque naquela época era só a escravidão e a Princesa Isabel. Eu trabalhava também com desenhos. Na hora de pintar, por exemplo, era muito comum os alunos fazerem pinturas, como autorretrato, por exemplo. E o menino negro tinha dificuldade em pintar. Não tinha nem palheta de cores, e eu falava para usarem a cor preta, mas eles respondiam que isso não é cor de pele. Então, começavam a surgir os questionamentos, como o de que a cor preta é feia.
Portanto, a partir do que eles traziam, abria-se uma discussão, e eu começava a tentar desconstruir tudo isso. Aí apareciam as chacotas. Por muitas vezes, a criança negra chorava e eu ficava em situações muito delicadas. Foram momentos que eu também refleti muito sobre esse meu trabalho, sobre como fazer as abordagens corretas. Porque eu não poderia, de maneira nenhuma, deixar aquela criança negra constrangida.
Geledés- Qual é o impacto da educação antirracista na vida dessa criança negra?
A escola é o primeiro lugar que o racismo impacta a vida de uma criança. Então é muito importante que essa educação antirracista venha já na primeira infância, para que essa criança negra não passe por questões que muitas delas passam, como a baixa autoestima. Como professora de artes, ensaiei muitas danças, como as quadrilhas para festas juninas. E tinha sempre aquela menina negra que ficava sem parzinho. Enquanto professora e mulher negra, essas situações mexiam muito comigo. O que eu ia falar para aquela menina que ninguém queria dançar com ela? O que eu ia falar para aquele menino que quando eu pedia para ele pintar o desenho da cor que ele era realmente, de fato, usando lápis da cor preta ou lápis da cor marrom? Minha geração de professores, enquanto pessoas negras, passou por diversos dilemas em sala de aula. Porque na época não tinha o que fazer além de dar afeto para aquela criança.
Lembro-me de um fato no Ensino Médio, em que pedi aos meus alunos que ficassem em um grupo para desenvolvermos uma atividade que não tinha nada a ver com a temática étnico-racial. Um aluno negro retinto ficou solitário, sem grupo. Apontei a ele para um determinado grupo e disse: ’Vá para lá’. Mas uma adolescente, de 15 anos, disse assim: ‘As cotas aqui em nosso grupo já acabaram, professora’. E respondi: ‘Não estou acreditando que no que estou ouvindo isso da sua boca!!… Com tudo que a gente já trabalhou!!’ E aí, as lágrimas correram no rosto desse aluno. A partir daí, resolvi criar um coletivo nesta escola. Aliás, participei de alguns coletivos, como o Coletivo Leste Negra e o Coletivo Lúcia Antero (que tratam das questões raciais).
Hoje, as professoras já levam para a sala de aula uma diversidade de brinquedos, como por exemplo as bonecas pretas. Trazem também livros de autoras negras, com histórias de crianças negras, e ainda falam sobre a cultura africana. O que percebo é que hoje há um material que chega às escolas. A formação do professor ainda é pequena, mas melhor agora. E se ela alcança esse professor, consequentemente, irá alcançar a criança.
Geledés- Geledés constatou em pesquisa própria que apenas 29% dos municípios têm uma educação antirracista no Brasil. Ou seja, um índice baixíssimo para uma população 56% negra. O que ainda precisa ser feito para que os municípios brasileiros adotem políticas antirracistas?
Durante os governos progressistas, a Prefeitura de São Paulo estabeleceu uma secretaria voltada à questão étnico-racial. Porém, quando a gestão sai, isso não acontece de uma forma tão forte, e por vezes acabam com as secretarias, e então esse trabalho fica descontínuo. Estou na educação há muito tempo, e independentemente das gestões que passam, tenho certeza da importância de uma educação antirracista para diminuir as desigualdades nesse país, para a questão da equidade e para que haja impacto nos corpos negros e nos corpos brancos.
Geledés – Estamos vivendo momentos de avanços da extrema-direita. De que forma a educação antirracista promove a democracia?
A educação antirracista é um ato democrático quando ela olha para trás, quando entende toda a estrutura de como esse país foi construído. Um país que, ao longo do seu processo, teve a escravidão que mais tempo durou no mundo, com mais de trezentos anos. Portanto, não tem como essas mazelas não respingarem nos corpos negros. É olhar para trás e fazer as devidas reparações. Principalmente porque foi um país em que simplesmente se assinou um documento sem criar nenhuma política de reparação, nenhuma política pública para esse povo. Precisamos de ações para que haja equiparação.
Geledés – E como se faz isso?
É preciso sensibilizar. E além de sensibilizar, precisamos contar a história, contextualizar, porque muita gente ainda não aprendeu a olhar para o Brasil e a olhar para essa desigualdade. Sensibilizar os professores. Trazer à luz histórias como a de Luiz Gama, Carolina Maria de Jesus. E, ao mesmo tempo, sensibilizar fazendo com que olhemos para aquela criança, para aquele adolescente que sofreu racismo e que poderia ser alguém de sua família.
No ano passado, desenvolvi um projeto pelo programa Mais Educação, o Baobás Capistrano de Abreu, no qual trabalhei também a arte sob a perspectiva negra, africana. Toda a minha trajetória de educação é pautada na temática étnico-racial, e isso é algo que precisa acontecer. E por que ela precisa acontecer? Porque eu já tive muito retorno de alunos negros que disseram para mim ao pé de ouvido: ‘professora, eu gosto tanto quando a senhora fala sobre isso”.
Geledés – Esta é a sua grande recompensa por trabalhar com a educação antirracista?
Esse foi o meu melhor aprendizado, porque eu me encontrei enquanto mulher negra, entendi qual o meu lugar na educação, entendi a responsabilidade do meu trabalho, me entendi enquanto pessoa, enquanto pessoa preta. Então, a cada curso que eu ia, cada lugar, cada personagem que conhecia, nossa, gente, eu ficava tão encantada! Viver em um país racista é muito difícil, passar pelo racismo é muito difícil. Mas fazer com que uma criança não passe por aquilo que eu passei, que um adolescente não passe pelo o que eu passei, e que tenham autoestima e se sintam empoderados. Quando olho para esses homens e mulheres negras de cabelo para o alto, quando eu olho para esses homens e mulheres negras ocupando espaços, eu falo: ‘Que coisa linda, deveria ter sido assim desde sempre’. É a falta de oportunidade que fez com que a gente não chegasse aos lugares. Eu trabalho para ver os meus ocupando os mesmos lugares que qualquer pessoa possa ocupar, seja ela branca, preta, amarela. Meu trabalho é para isso.