por Fabíola Oliveira
Venho acompanhando o susto que a comunidade preta tomou com o anúncio do lançamento da série “Sexo e as Nêga”, de Miguel Falabella (aquele do personagem loiro, alto e nórdico que odeia pobre!). Mais uma vez veremos a televisão desempenhando sua função perversa e abjeta de desqualificar e desprestigiar as manifestações próprias da nossa negritude. Mais uma vez veremos protagonistas pretas sem protagonismo, ainda que a turma do “somos todos macacos” diga que estamos exagerando…
Mas, antes de pensar sobre a narrativa propriamente dita de “Sexo e as Nêga”, me peguei pensando no título da trama. Dentre as tantas perguntas que fiz, a que mais me instiga é: qual a relação que existe entre as palavras “sexo” “nêgas”? Cheguei a alguns pontos:
1. Estupro
Mulheres pretas eram violentadas por seus carrascos (senhores de escravos), por carrascos convidados (os senhores de engenho quando recebiam outros senhores em sua propriedade, ofereciam suas melhores pretas para servirem sexualmente aos estupradores visitantes) e por capitães do mato (pretos arrendados pela branquitude, com fins de barbarizar os seus pares);
2. Hiperssexualização do corpo preto
O significado do corpo da mulher preta é plenamente relacionado à animalização e à exploração sexual. Expressões como “mulata tipo exportação” flagram o entendimento social sobre o corpo da mulher preta: aquele corpo que é comercializado para satisfazer sexualmente clientes do mundo todo. O próprio termo “mulata” tem relação direta com o animal mula, estéril, que serve apenas para trabalho. A bestialização desse corpo feminino e africano é de uma violência absurda: reduz-se o Primeiro Ventre do Universo à um amontoado de carne que deve ser consumido, sugado em sua energia e dispensado quando quase morto;
3. Extermínio da chance à fragilidade
Comparadas a mulas (animais destinados ao trabalho de carga), mulheres pretas se transformaram em sinônimo de força. Mais uma investida do projeto de bestialização dos nossos corpos e sentimentos. Criou-se o mito de que não somos sensíveis, que o nosso corpo foi forjado pro trabalho pesado, que suportamos mais a dor do que qualquer outra pessoa (branca). Essa animalização é comprovada em estatísticas que denunciam que mulheres pretas, em hospitais públicos, são as que menos recebem anestesia na hora do parto. Mulheres pretas são as que, estatisticamente, mais sofrem com a violência doméstica. E a cultura do estupro segue vitimizando mais mulheres pretas (estupros no perímetro urbano e dentro do ambiente doméstico também, considerando que muitos homens violentam suas companheiras);
4. Saúde emocional em declínio
A quem pense que mulheres pretas sejam a mais fiel definição da volúpia e espontaneidade sexual. Mas não! Somos o retrato da solidão. Apesar dos dados perversos, é sabido que existe uma declarada ascensão da mulher preta, jovem, universitária. São mais mulheres pretas na graduação e nos programas de pós-graduação. Mais mulheres pretas empreendendo e tomando as rédeas de sua independência financeira. Mais mulheres pretas em cargos de gestão. Porém, essas mesmas mulheres, por diversas razões que rendem mais outros textos, se vêem sozinhas. É uma solidão que está pra além da falta de companhia: é a alma da mulher preta que está adoecida e não existe remédio que dê conta da cura enquanto o projeto de embranquecimento social estiver bem articulado e afastando as mulheres pretas dos homens pretos verdadeiramente dispostos a formarem famílias pretas, plenas em amor e significado político;
5. Desqualificação e redução do sentido do sexo
O sexo atrelado ao corpo da mulher preta é o fugaz, rápido, pago, superficial e sem ligação amorosa. O sexo com a mulher preta é o que permite a violência, o escárnio, a insensibilidade e a relação mercantil. Mulher preta que reclama atenção emocional geralmente é rechaçada e posta no seu lugar de “mula”. O sexo com a mulher preta quase nunca dialoga com a beleza ancestral desse corpo. Nunca é o sexo simbólico: é sempre aquele no escuro dos becos, ou no silêncio do adultério. A mulher preta é sempre a outra, a coadjuvante – protagonista apenas nas questões fisiológicas, com todo o seu aparato emocional e humano desconsiderado.
Das relações estereotipadas, rasas e compromissadas apenas com o senso comum e com o racismo, dessas não me ocupo. Mas das falas subliminares, das relações encobertas e das dores veladas, são essas as relações que busco pensar. Tentar entender como que essa perversidade exposta em praça pública não constrange o autor(!), como que ele faz chacota em horário nobre de mais da metade da população brasileira e ainda ganha um pró-labore por isso.
Quero entender, antes de tudo, como que essa “coisificação” de nós atrasa nossa militância. Onde o Movimento Negro erra na comunicação com seu próprio povo, enquanto o racista acerta, atinge e nos engessa.