Não é exagero a mulher supervalorizar uma ameaça vinda de um homem: o alerta vem de alguém que viveu isso na pele, e que pode ter sobrevivido ao tomar uma pequena decisão
Por Maitê Berna. do Ponte
Quando vi a notícia da morte de Ana Carolina Vieira, ex-dançarina da banda Aviões do Forró, fiquei pensando na frase que falei para mim mesma há alguns anos, quando vivi um relacionamento abusivo: “sim, ele vai matar”.
Ana foi assassinada pelo covarde ex-namorado Anderson Rodrigues Leitão, que, vejam vocês, era ciumento e não aceitava o fim da relação. Como se fosse dono da Ana. Ana, ele não é seu dono, nunca foi, você não tem responsabilidade alguma pela doença e muito menos pela dor dele. Pena que não pude te encontrar antes dele, dizer que não dependia de você, que não ia conseguir ajudá-lo a se curar. E que talvez fosse mais seguro que esse último encontro acontecesse em uma praça pública ou em uma avenida bem movimentada. Eu sei que você estava tocando sua vida e ele deve ter dito um monte de mentiras para te convencer de que merecia uma chance, ou, talvez, para pedir desculpas por todas as vezes em que exagerou quando teve ciúmes. Eu sei, Ana. Os abusadores dizem isso.
Não pude te ajudar. Mas penso que está na hora de eu tentar, no mínimo, alertar outras mulheres sobre casos como o seu. Eu te entendo, Ana. Você nem pode imaginar o quanto.
Sim, ele vai te matar. Essa frase ecoou na minha cabeça há alguns anos.
A verdade é que a gente acha que o cara matar a garota por ciúmes, por inconformismo com o fim, seja lá por qual razão, é coisa de noticiário trash da TV. Ou da literatura. Mas não é. De repente, acontece com você. Temos o hábito de menosprezar a insanidade do outro; ou subestimar os sinais de alerta. Alguns vão dizer que é exagero, mas eu garanto: não é. Sim, ele vai me matar.
Ele não me matou, mas poderia. Muito. Hoje vejo com clareza. E isso não é um exagero.
Como um sonho
Quando o conheci, sofria por causa de um relacionamento que não tinha tido um fim desejável. De certa forma, também havia sido um relacionamento abusivo, no qual me humilhei diante de um cara que sempre ficou por me assumir, mas nunca o fez.
Já o outro apareceu como um sonho bom. Rapidamente me assumiu, mandava flores, pagava a conta do restaurante, fazia mil planos, falava em casar. Em apenas três meses falava em casar. O tempo me mostraria que essa afetação já era um indício de que algo não estava nada bem.
Leia Também: PLP 2.0 – Aplicativo para coibir a violência contra a mulher
Ele era perfeito. Mas não existem seres humanos perfeitos. E a imperfeição no fim das contas é o mais legal da relação. Ele era perfeito.
Não demorou muito para que os episódios de ciúmes começassem a acontecer. Em qualquer lugar onde eu estivesse, não importava o momento, qualquer que fosse, ele dizia: “quem é aquele cara para quem você está olhando? Está querendo dar pra ele, é?”. Eu reagia e a discussão era certa. Suja, vagabunda e mentirosa eram as coisas mais leves que ele me falava. Virava a situação a tal ponto que começava a chorar e alguns minutos depois me via pedindo desculpas para ele. Desculpas por absolutamente nada. Por algo que não fiz. Desculpa por ser eu.
Quando não estava a fim de transar, as ofensas eram quase certas e ele levantava suposições a respeito da minha idoneidade e honra. Me torturava psicologicamente e eu cedia. Não foram poucas as vezes em que chorei depois do sexo. Sabia que aquilo não estava legal, que não estava indo bem, mas não conseguia sair. Ele me colocava para baixo e dizia que ninguém ia querer ficar comigo. Que só ele mesmo para aceitar uma sem vergonha como eu. Comecei a acreditar que eu era uma pessoa horrível.
Eu também estava doente
As brigas começaram a ficar mais frequentes e eu me sentia esquizofrênica toda vez que ele dizia que eu estava olhando para alguém e eu sequer sabia para quem era, porque na realidade eu não estava olhando para ninguém. Comecei a achar que ele tinha razão. Nas ocasiões em que fomos visitar minha família, ele inventava desculpas – a dor de cabeça era a mais usada – para não ficar perto dos meus familiares. Ele não gostava da minha família. Da boca pra fora dizia gostar. Mas não se sentia à vontade, justamente porque aquele não era seu lugar. Minha irmã logo sacou que ele era esquisito. Mas como largar um cara que fazia de tudo para você – tudo de ruim, mas tudo de bom também.
Depois vi que estava doente também, mas, naquele momento, era o príncipe que finalmente me assumia e fazia de tudo para me ver sorrir – ainda que na maior parte do tempo me fizesse chorar. Certa vez, admitiu que havia entrado no meu e-mail e visto algo que não gostou. Eu fiquei brava e ele chorou, dizendo que era por amor e que não ia mais fazer. Mas continuou. Toda hora prestava atenção à minha senha, tentava de todo o jeito desbloquear meu celular, e quando era pego no pulo fazia sempre a mesma coisa: chorava, dizia que me amava, que queria meu bem, que era ciumento e precisava de ajuda, mas que me amava e pedia perdão. E eu perdoava, sei lá por que. Por acreditar no ser humano, talvez. E ele continuou. E fez pior.
Até que um dia discutimos e ele terminou a relação alegando que eu ainda gostava de alguém do passado. Na realidade, fazia algumas semanas que, nas discussões, jogava na minha cara coisas que não tinha dito para ele, algumas muito íntimas, que talvez tivesse falado para minha mãe ou para uma amiga. Eu não entendia como ele sabia de tudo aquilo. Cheguei a pensar que estava entrando na minha cabeça, achei que estava enlouquecendo.
Violação na alma
O cara tentou me deixar na pior, falou coisas horríveis a meu respeito e senti que, claramente, competia comigo. Sentia-se inferiorizado. Me senti tão leve com o término. Mal sabia que o pior estava por vir. Os dias que se seguiram a isso foram terríveis. Ele insistiu que tinha de falar comigo e chegou a falar: “quero dizer algo que fiz a você, assim poderei seguir em paz”. Aceitei encontrá-lo depois de alguma insistência, mas por intuição marquei em local aberto. Disse a ele para irmos a uma praça. Lá, ele confessou que havia grampeado meu telefone celular. Por dois meses teve acesso a absolutamente tudo da minha vida: redes sociais, conta bancária, as conversas que tinha com meus amigos e familiares, SMSs, até mesmo quem eu adicionava na agenda do celular. Ele me violentou. Não consigo expressar em palavras o que senti naquele momento, mas acho que o mais próximo foi ódio. E depois pena. Mas a pena demorou alguns meses. A invasão de privacidade foi para mim como uma violação de algo muito íntimo. Me senti violada, exposta. Me senti estuprada. Foi uma violação na alma.
Ele não aceitava o fim. Escreveu e-mails, ameaçava, me esperava na frente dos locais onde eu ia, me intimidava. Fiquei muito tempo sem conseguir dormir de luz apagada. Achava que a qualquer momento ele iria invadir minha casa e conseguir o que queria: me aniquilar. Contei a dois amigos o que estava ocorrendo. Não disse nada para meus familiares. Primeiro por humilhação e depois por preocupação, já que eles não moram em São Paulo. Um amigo me recomendou que ao menos fizesse o registro da ocorrência. Na Delegacia da Mulher, mais e mais humilhação. Fui atendida por um homem e quase tive de brigar para conseguir uma audiência com a delegada, que fez o registro, mas perguntou até onde eu queria chegar com aquilo, porque o ônus da prova era meu e o feitiço poderia virar contra o feiticeiro, ou seja, tudo para desencorajar a mulher a fazer a denúncia.
Hoje vejo o quão fraco meu abusador era e o quão forte eu sou e posso ser. O mais curioso é que esses caras buscam justamente mulheres fortes para subjugar. Acho que é o único jeito de eles se sentirem menos inferiores. Mas são tão pequenos. E podem ser, sim, perigosos. Denuncie, faça um escândalo e, sobretudo, não permita que ele chegue perto de você.
* Este texto é uma homenagem à Ana Carolina e a todas as mulheres que já foram subjugadas. E aos amigos que seguraram essa barra comigo Erica, Victor e Gabriel. Obrigada.