Só hétero, cis e branco reclama da maior diversidade na TV, diz Fabrício Boliveira

Protagonista de 'Volta por Cima', ator diz encarar declarações como a de Thiago Fragoso sobre uma suposta falta de espaço para homens brancos em novelas como uma ignorância que não pode mais ser admitida

Fabrício Boliveira diz ter sido uma criança que “falava pouco e sonhava bastante”. Gago até os 15 anos, o ator fez sessões de fono durante muito tempo. “E que foram muito importantes”, frisa ele.

Mas foi ao subir em um palco que a dificuldade de se expressar com as palavras desapareceu. “Aos 15 anos, quando cheguei no teatro, vi que conseguia falar sem parar. Percebi que tinha alguma coisa que acontecia quando eu estava em cena e que fora de cena não acontecia.”

“De algum jeito me curei [da gagueira] ali. Você vê que estou falando agora e não gaguejei”, completa, entre risos. Pelo contrário. Durante a conversa de cerca de uma hora com a coluna, realizada por videochamada, Fabrício se mostra muito comunicativo e sem qualquer resquício do menino que enfrentou adversidades na fala.

Na TV, o público vê o ator de 42 anos diariamente como o fiscal de ônibus Jão, de “Volta por Cima”, o seu primeiro protagonista em uma novela da Globo. “Esse personagem é o retrato do brasileiro que acorda cedo para trabalhar, que é ético com as pessoas, que é honesto.”

“É até engraçado porque a gente tem visto isso tão pouco na ficção e nos jornais. É tanto caso de corrupção, de desvio de caráter, que o Jão se torna quase um personagem utópico.”

Na visão dele, Jão não tem nada de ilusório. É um cara que existe, sim, “que a gente vê no nosso pai, num vizinho, em um irmão”. “E não no sentido de bondade, mas de ter uma trajetória digna e de respeito com o outro.”

Após experiências amadoras no teatro, Fabrício estreou profissionalmente nos palcos aos 19 anos em uma montagem de “Capitães de Areia”, da Companhia Baiana de Patifaria. Em novelas, sua primeira aparição foi como o escravo Bastião de “Sinhá Moça”, em 2006, da Globo. Também se destacou na emissora como Roberval, de “Segundo Sol” (2018).

Nos cinemas, ficou conhecido por suas atuações em filmes como “Faroeste Caboclo”, de 2013, em que interpretou o protagonista João de Santo Cristo, e em “Simonal” (2019) como o personagem-título.

Nascido e criado na Bahia, vindo de uma família de classe média, Fabrício conta que desde sempre teve contato com a arte. Funcionária pública, a mãe dele, Graziela Boliveira Pereira, já tinha sido atriz e trabalhava numa biblioteca em Salvador quando o ator nasceu. “Eu ouvi muita contação de história, sempre estive nesse lugar da imagem, da mente, da reflexão e do sonho.”

Foi por conta desse desejo artístico e do espírito questionador que o ator criou, ao lado do produtor Gabriel Bortolini, o Elenco Negro, plataforma digital que nasceu para ampliar a inserção dos artistas negros no mercado de trabalho.

Inicialmente, a proposta surgiu como um cadastro de profissionais inspirado no trabalho que Zezé Motta realizou nos anos 1990 com o Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan). “Fiz parte desse projeto da Zezé e, para mim, foi uma grande descoberta pensar que, da Bahia, eu poderia estar em um cadastro em que as pessoas teriam acesso ao meu trabalho.”

Era uma época também, recorda ele, que se podia contar nos dedos os atores negros presentes em produções audiovisuais. Para ele, ainda que a representatividade tenha aumentado nos últimos anos, “há ainda uma caminhada enorme” a ser percorrida. “Não chegamos em lugar nenhum ainda.”

O Elenco Negro faz a conexão entre artistas e produtores e diretores, mas também tem como objetivo fomentar conversas e reflexões. Ele conta, por exemplo, que já surgiram duas peças desses diálogos internos.

“Porque não tem só a ver com quantidade, mas tem a ver com saber como esses atores estão inseridos no mercado”, explica. “A gente precisa entender quando é que as pessoas que estavam de fora [do mercado] vão poder opinar, poder escolher, poderão sair delas as grandes ideias. Quando é que elas vão ter a grana? O Elenco Negro traz todas essas indagações”, acrescenta.

Fabrício ironiza e diz que só pode ser encarada como piada a declaração dada à Folha pelo ator Thiago Fragoso de que “não pode mais ter homem hétero branco nas novelas”. “Ele não mora no Brasil, né. Ele não olhou para a história dele nem para a história desse país. Só pode ser isso. Não dá para lidar com tanta ignorância hoje, em 2024”, diz.

“Eu acho que é realmente um lugar de mimado, de quem sempre teve tudo e não quer de jeito nenhum compartilhar esse espaço”, complementa. Para Fabrício, “talvez só o hétero, cis e branco” ainda reclame hoje de ações como as cotas raciais para ingresso em universidades públicas e por mais diversidade e representatividade na TV. “Ou gente que ainda está grudada ali no passado e não entendeu que estamos caminhando para um outro lugar.”

Na sua visão, é preciso ficar atento aos que querem “roubar o lugar de pessoas que não tiveram privilégio”. Ele cita o caso do ex-Big Brother Matteus Amaral, acusado de burlar o sistema de cotas ao se declarar como sendo preto.

A declaração de Fragoso, acrescenta Fabrício, aponta também para uma outra direção, de que quem reclama pode estar fora do mercado por falta de qualidade profissional e por ter hoje outras pessoas mais bem preparadas para o ofício.

“Vão ter que abrir o olho e correr um pouquinho mais atrás”, diz. Fabrício afirma que sempre “esteve no lugar da ralação”, assim como a maior parte dos atores brasileiros. Ele contabiliza que trabalha na Globo há quase 20 anos, mas que na maior parte do tempo foi contratado por obra, ao contrário de Fragoso, que fez parte do elenco fixo da emissora por 23 anos.

“Nunca tive tempo nem o privilégio de poder pensar nas minhas obras ou no que queria fazer porque não tinha um salário fixo chegando todo mês”, afirma. “Quando tive [maior estabilidade financeira], em vez de ficar de boa em casa ou abrindo restaurante vegano ou comprando gado, eu estava exercendo outro tipo de função, abrindo cadastro para outros atores negros.”

O ator Fabrício Boliveira – Divulgação

Para o ator, é cansativo seguir tendo de falar sobre um assunto do qual ele já discorre há 20 anos. “Porque é um lugar tão obsoleto, tão fora do tempo. Meu Deus, vou ter que ficar explicando isso o tempo inteiro? Eu não aguento. Aí eu perco meu tempo de finalizar meu filme, de estar no Elenco Negro, de desenvolver outros projetos.”

Questionado se costuma ser cobrado também a se posicionar politicamente, como sobre o escândalo que culminou na queda do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, Fabrício diz que não. E credita isso à sua postura de não ficar dando opinião “sobre tudo” nas redes sociais.

No caso em questão, em que o ministro foi acusado de assédio sexual, o ator diz ficar “aliviado de que as mulheres vão ter Justiça”. “Mas não consigo ainda julgar ou colocar o dedo na ferida, porque ainda tem a defesa dele, tem uma série de coisas para acontecer.”

Fabrício afirma que a lógica, hoje, das redes é muito acelerada e não dá tempo para as informações serem elaboradas e refletidas. “A maioria das pessoas tem um discurso na internet totalmente diferente das ações que tomam na vida.”

“Eu prefiro ficar mais em silêncio, pensando. Até agradeço aos meus tempos de gagueira, de pouca fala e muita escuta, que me ensinaram a ter tempo para refletir.”

Sem deixar de lado a atuação, o ator afirma querer expandir cada vez mais a sua faceta mais autoral, manifestada como diretor e roteirista. Um desses projetos é o filme “Antígona — Não Nasci pro Ódio, Nasci pro Amor”, em que ele traz a tragédia grega de Sófocles para os dias atuais, tendo como protagonista uma mulher negra baiana. O longa foi gestado e gravado durante a pandemia em um único plano sequência e com poucos recursos.

Agora, Fabrício está às voltas com a finalização do filme, que recebeu investimento por meio da Lei Paulo Gustavo de incentivo à cultura. A ideia é lançar a obra no ano que vem, primeiro em festivais que aceitem “propostas de longas mais radicais no processo e na linguagem”.

O ator diz que gosta de fazer filmes com uma “galera mais radical”, como os cineastas Eryk Rocha e a dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. Com o primeiro, ele atuou em “Breve Miragem de Sol” (2018) e com os outros dois em “Mugunzá”, lançado em festivais neste ano.

“Isso também fala um pouco sobre mim, sobre como eu gosto de ver a arte sempre com política. Até nos trabalhos que eu faço e que parecem mais comerciais, sempre solto uma coisinha de política.” Fabrício faz questão de dizer que não se trata de fazer politicagem. “Política pra mim é relação. Então, em tudo que faço sempre tem uma crítica, um lugar para refletir a respeito das relações.”

Solteiro, o ator afirma que está feliz, mas que tem refletido muito sobre o desejo de ter filhos. “Sempre fico na dúvida se quero ser pai ou se quero ser um educador. Acho que as coisas se misturam, mas não queria ser pai só por uma coisa egoica.”

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