uma amiga alugou uma sala na comercial da Asa Norte de Brasilia para uma turma de liberais, jovens e endinheirados, como ela definiu.
ela os conhecia e sabia que eram da turma de midiotas verde-amarelos que marcham pelas ruas a bater panelas e mostrar o dedo médio para as câmeras.
“achei estranho, devem estar a conspirar, a sala deve estar sendo usada para dar palestras, só há cadeiras nela e em semicírculo”. contou-me pelo telefone.
há, pensei, darei um bisbilhote. sou um perdigueiro e farejo fuleiragens de longe. tinha que pensar em um disfarce para penetrar naquela reunião.
não poderia me transformar em uma mosca, não sou chegado a plantar escutas, não aprecio arapongagens, não ficaria abjetamente escorado atrás da porta, ouvido colado, a decifrar o burburinho lá de dentro.
como proceder?
minha curiosidade aumentava. e se tramam matar a presidenta, se planejam plantar uma outra bomba por aí?, tá cheio de tarados nas ruas.
ah, já sei. o melhor seria me tornar invisível e ver aquela reunião do início ao fim. e você sabe, é muito fácil se tornar invisível em meio a machos brancos de direita. é só ser negro e vestir-se de serviçal.
os burguesotes costumam ignorar garçons, domésticas, motoristas, porteiros… toda sorte de serviçais. falam na frente deles sobre qualquer assunto, sem pudor; como se aquela gente não os pudesse ouvir, ou não compreendessem o que dizem, ou simplesmente por ignorá-las como pessoas.
bingo.
botei um macacão de firma e me converti numa não-pessoa. entrei na sala antes da reunião começar e disse que o condomínio me contratara para retificar o ar-condicionado. nem me deram ouvidos.
as janelas estavam abertas e a manhã de domingo era fresca. em Brasília é assim, pela manhã cantam cigarras, à noite, guitarras.
fui tirando delicadamente as ferramentas enquanto os convidados chegavam à sala. achei tudo muito estranho, as paredes estavam decoradas com fotografias de gente sorrindo, crianças, velhos, adultos e até cães sorridentes.
que diabos aconteceria ali?
de repente a coisa começou.
me chamo Paolo Luccinni, sou advogado, tenho escritório próprio e fui membro do Movimento Pátria Livre.
todos falaram em coro: bom dia Paolo. e Paolo prosseguiu.
vivi meses alimentando-me de ódio. de repente, não podia mais viver sem ele. e a cada dia eu precisava de uma dose maior. comecei comentando posts em blogs progressistas, depois destratava amigos e parentes em churrascos, frequentei passeatas, passei a xingar vizinhos no elevador se usavam algo vermelho nas vestes, quando me vi a noite a bater panelas na minha varanda percebi que algo muito grave se passava.
dormia com estremecimentos musculares, sonhava com refregas e cheguei um dia a socar minha esposa enquanto dormíamos. o médico me disse que eu poderia enfartar a qualquer momento, por isso estou aqui para compartilhar com vocês minha experiência.
só por hoje não vou mais sentir ódio.
disse isso e baixou a cabeça, foi aplaudido. alguns colegas se levantaram e lhe afagaram, bateram-lhe nas costas, cafunaram-lhe.
com mil diabos, tratava-se de uma reunião dos Neuróticos Anônimos. parei de mexer no ar-condicionado e fiquei a escutar aqueles interessantíssimos relatos.
na outra extremidade da sala uma outra voz.
sou Roberto Tomazio Neubarth, empresário, herdei de meu pai uma concessionária de automóveis e alguns imóveis. também sofro do mal da histeria coletiva. razão para sentir ódio não tenho. vivo confortavelmente, compro o que quero, não deixei de ganhar um centavo por causa de governo algum.
porém, no facebook bloqueei e fui bloqueado, fiz da rede social uma rede antissocial, me converti de pacato cidadão liberal em visceral sociopata de plantão.
passei a malhar e a praticar jiu-jitsu para dar vazão à minha revolta. mas nada suplantava o meu desejo de socar, arrancar sangue vermelho do nariz de um comunista.
fui um dos primeiros a entoarem o refrão vai pra cuba, e sempre rezava o pai nosso com meus amigos antes das caminhadas cívicas.
de repente eu vi o papa indo a Cuba, aquilo deu um nó na minha cabeça. me vi como um autômato que sofria lavagem cerebral e agia descerebradamente.
de repente tudo o que eu defendia se materializava na minha frente de outra maneira.
Obama foi a Cuba, os estadunidenses estão a parar cruzeiros na costa cubana, o papa está lá e Raúl Castro, como pude me deixar enganar?, tem formação jesuítica.
senti-me um idiota. só por hoje não vou mais sentir ódio.
foi aplaudido e afagado.
e as falas iam se sucedendo. um coroa, médico conhecido por todos, disse que percebeu que estava doente quando convidado a se retirar de um shopping – manu militari – na presença da filha pequena, porque xingava e gritava com o papai noel, chamando-o de comunista.
minha esposa convenceu-me a fazer análise. ao chegar no analista ele me disse: logo o papai noel, amigo, símbolo maior do capitalismo, ali dentro de um shopping, templo do consumo?
só por hoje não vou mais sentir ódio.
uma senhorinha confessou que foi às ruas pedir intervenção militar e o marido, que é militar reformado, a aconselhou uma internação psiquiátrica. ela disse que por alguns meses agia como um animal de tourada, esticavam-lhe um lenço vermelho nas ruas e ela bufava, abaixava a cabeça e mostrava os chifres.
um jovem universitário disse ter percebido que era um ódio adicto quando se apaixonou por uma estudante de antropologia.
ela o corrigia sempre com muita paciência. até que um dia ela lhe falou: Giuliano, você estuda numa universidade federal e recebe pensão vitalícia, cara. quando seu pai era vivo você vivia em um apartamento funcional. como você pode pregar o estado mínimo se você suga o máximo do estado, fera?
só por hoje não vou mais odiar. aplausos e afagos.
me chamo Rebeca Werneck, funcionária pública. comecei como quase todo mundo aqui, lendo a revistaveja e compartilhando qualquer coisa que eles dissessem. chamava Villa de historiador, Pondé e Olavo de Carvalho de filósofos, Leitão de economista, era um delírio; via o jornal nacional todos as noites, ia jantar espumando pela boca; depois passei a comentar, anonimamente, em blogs progressistas, colei o adesivo da Dilma de pernas abertas no meu carro e, como dizer?, meu último ataque de ódio foi atropelar um ciclista.
com ele caído no chão eu gritei: vai pra cuba, comunista. com ódio nem o vi. ele me reconheceu, era meu sobrinho e estava voltando da faculdade.
quase ficou paraplégico. detalhe, ele odeia falar em política.
só por hoje não vou mais sentir ódio.
sou Onofra Parra, advogada. fui ferrenhamente contra as cotas para negros nas universidades federais, e fiz parte de uma comissão que discutia cotas para as mulheres nas próximas eleições da OAB. me convenceram que era uma questão de justiça.
só por hoje não vou mais sentir ódio.
abraços e afagos.
os depoimentos foram se sucedendo. antes da pausa para o lanchinho – sucos variados e pães integrais com geleias de frutos do cerrado – um dos presentes leu um aforismo que ele atribuiu a Shakespeare:
amigos, reflitamos sobre as palavras do grande dramaturgo e façamos dela um mantra: “sentir ódio é como tomar veneno e querer que o outro morra”.
só por hoje, gritaram em coro.
se auto aplaudiram, se abraçaram olhando nos olhos uns dos outros e sorrindo com todos os dentes para cada um dos presentes.
o ambiente exalava felicidade, era como uma selfie.
é isso, pensei comigo, mais amor e mais alegria. be your selfie.
entrei e saí sem que ninguém desse pela minha presença. não me ofereceram sequer um copo de refresco, aqueles frescos.
aqueles mentecaptos deixaram de sentir ódio por uma questão de saúde, por egoísmo, mas continuam indiferentes aos do andar de baixo.
peidei silenciosamente e saí da sala como entrei, invisível como um flátulo.
palavra da salvação.