Sobre Direitos e Argumentos: uma reflexão…

Júlia Loonis Oliveira (*)

 

O debate sobre o PNDH III trouxe à tona a questão dos Direitos Humanos e se constitui numa chance de discutir o tema com setores da sociedade brasileira que não estão familiarizados com o assunto. Defensores, acadêmicos, representantes da sociedade civil que trabalham com Direitos Humanos têm tido a oportunidade de inserí-lo, quer como justificativa, quer como argumento, nos diversos debates que orientam a vida social e política brasileira.
Neste contexto, surge a seguinte questão: é realmente propícia a inserção e utilização do discurso dos Direitos Humanos em todos e quaisquer desses debates? Não estaremos correndo o risco de simplificar certos debates, de não contemplá-los, ou até de ocultar o ponto do real problema por trás das discussões, recorrendo, de modo sistemático, ao argumento do respeito aos Direitos Humanos?

Essa pergunta soa particularmente pertinente quando se discute a questão do aborto, que nos servirá de exemplo aqui. Em um artigo da última edição do Le Monde diplomatique (fevereiro de 2010), Regina Soares Jurkewicz, da equipe de coordenação da entidade Católicas pelo Direito de Decidir, fundamenta sua argumentação a favor da legalização do aborto no fato de esse direito ser uma decorrência direta dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, portanto, dos Direitos Humanos enquanto conjunto de direitos interdependentes e indivisíveis. Este argumento vem sendo utilizado não só por ela mas também por outras tantas defensoras do direito ao aborto no Brasil. No contexto da polêmica atual sobre a legalização do aborto, é essencial se questionar sobre a pertinência e eficácia dos argumentos utilizados.

Olhando para o panorama mundial, vemos que hoje, dos 27 países membros da União Européia, apenas quatro ainda proíbem o aborto. Nos Estados Unidos, uma decisão da Corte Suprema de 1973 permitiu a descriminalização do aborto. Nestes países, os argumentos que motivaram a decisão de legalizar o aborto, e ainda hoje constituem o discurso dos movimentos a favor da salvaguarda deste direito, se fundamentaram no problema de saúde pública, que a proibição do aborto acarreta. Além disso, também se dá ênfase às mudanças sócio-econômicas e comportamentais do século XX, que resultaram numa verdadeira revolução quanto ao espaço e ao papel da mulher na sociedade e de sua maior autonomia, da qual o poder de decisão sobre o momento da maternidade é uma das garantias. Assim, a decisão de legalizar o aborto foi a solução encontrada pelos poderes públicos para enfrentar problemas sociais contemporâneos e resultou na elaboração de políticas públicas especialmente direcionadas.

É importante ressaltar que, enquanto os argumentos utilizados em outros momentos e outras sociedades enfatizaram e enfatizam as implicações concretas e cotidianas do exercício ou não deste direito, o debate no Brasil está hoje se concentrando na “super utilização” do discurso dos Direitos Humanos como indivisíveis e interdependentes. Por mais que este argumento não seja, em si, inválido, ele não dá conta das questões reais e complexas que existem por trás do debate, se revelando ser um dos mais abstratos. No caso do aborto, defensores se confrontam com questões morais, éticas e religiosas profundas, que não podem simplesmente ser ignoradas, como se não existissem.

A reflexão em torno da focalização do debate sobre o aborto na questão do respeito aos Direitos Humanos é apenas a ilustração de um questionamento mais amplo, que remete também ao modo como se discute a efetivação das políticas públicas no Brasil. Nem sempre o respeito aos princípios dos Direitos Humanos pode servir de argumento a ponto de fazer com que nos esqueçamos que as questões em jogo são muito mais complexas ou concretas e não passam unicamente pelo simples reconhecimento do que consideramos como um direito.

Isto se torna ainda mais pertinente no contexto da efetivação das políticas públicas. Não podemos esquecer de que o reconhecimento formal pelo Estado (reconhecimento que ainda está se buscando no caso do aborto) do Direito à educação, à saúde, à moradia, entre outros, não garantiu que estes se traduzissem em políticas publicas eficazes. Ou seja, em muitos casos, a concentração do debate sobre a questão dos Direitos Humanos como agenda política já se tornou insuficiente, até porque formalmente superado. Se as políticas públicas, no Brasil, não dão conta da realidade econômica e social, o motivo está muito mais nas nossas estruturas e nas práticas das nossas elites políticas e econômicas. De certa forma, e muito infelizmente, na nossa realidade, o “buraco é mais embaixo”.

(*) Historiadora e internacionalista do Projeto Justiça Cidadã

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