Esta é uma publicação especial motivada pelo Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
O 1º Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas ocorreu na República Dominicana, entre os dias 19 e 25 de julho de 1992. O evento acolheu representações de 70 países e seu principal objetivo era discutir e deliberar sobre as problemáticas e demandas das mulheres negras nas Américas. Durante o encontro foi criada a Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, bem como o dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, com comemoração em 25 de julho.
No Brasil, a partir das primeiras décadas do século XXI, devido ao significativo ativismo das mulheres negras, a data passou a ser comemorada com mais frequência e, em 2014, 25 de julho passou a ser também o dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, por meio da Lei 12.987, assinada pela presidenta Dilma Rousseff.
Tereza de Benguela é uma personagem do período colonial e sua história está relacionada com a resistência no quilombo do Quariterê ou quilombo do Piolho, localizado na margem ocidental do rio Guaporé, situado na cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade (1752), primeira capital da capitania do Mato Grosso, criada em 1748, após desmembramento de São Paulo, por conta da expansão da mineração.
Informações contemporâneas à Tereza de Benguela e aos diversos quilombos que existiram na região podem ser encontradas nos registros da Câmara de Vila Bela feitos pelos vereadores durante quase todo o século XVIII. Em 2006, as professoras Janaína Amado e Leny Anzai publicaram esses escritos em forma de livro.
Tereza se tornou liderança política do quilombo entre 1750 e 1770. Nesse período, mais de 200 pessoas, entre negros, indígenas e caburés (filhos de negros com indígenas) habitavam a organização. O quilombo se mantinha com o cultivo de variados vegetais e o consumo da carne de caça. Além disso, na localidade foram encontradas oficinas de objetos de ferro e teares de algodão.
Em 1770, a rainha Tereza de Benguela foi derrotada e segundo a antropóloga Maria de Lourdes Bandeira, no livro Território Negro em Espaço Branco, publicado em 1988:
A rainha Teresa ficou de tal modo chocada e inconformada com a destruição do quilombo que enlouqueceu. (…) Traumatizada pela ruína e aniquilamento de seu quilombo, num dos acessos de furor, expressão de revolta, a Rainha matou-se. O suicídio foi o gesto supremo de rebelião da Rainha à dominação dos brancos (apud, MACHADO, 2006, p.9).
Já nos Anais de Vila Bela, compilados pelas professoras Janaína Amado e Leny Anzai (2006, p. 140), está registrado que
posta aí em prisão, pá vista de todos aqueles a quem governou naquele reino, lhe diziam estes palavras injuriosas, de forma que, envergonhada, se pôs muda ou, para melhor dizer, amuada. Em poucos dias expirou de pasmo. Morta ela, se lhe cortou a cabeça e se pôs no meio da praça daquele quilombo, em um alto poste, onde ficou para memória e exemplo dos que a vissem (apud FARIAS JÚNIOR, 2011, p.92).
Décadas depois, em 1795, os remanescentes do quilombo foram novamente assombrados, agora pelos bandeirantes. Na ocasião, a região tinha pouquíssimas pessoas, mas mesmo assim elas foram capturadas e levadas para Vila Bela. Em 1835, a capital do Mato Grosso se transferiu definitivamente para Cuiabá e Vila Bela entrou em declínio, pois a maioria dos colonos e colonizadores deixou a região. Atualmente, a cidade, com cerca de 74% de negros, é conhecida pelas ruínas da época do apogeu colonial, pelas festas de São Benedito e ao Divino Espírito Santo, organizadas pelas Irmandades do Glorioso São Benedito, da Santíssima Trindade e do Divino em que ocorrem as apresentações do Chorado e do Congo.
Sambas-enredo: a história que a história não conta?
Quando se pensa nas escolas de samba normalmente vem à lembrança o carnaval, o brilho dos desfiles e o som empolgante das baterias, fenômeno do calendário cultural e de entretenimento que acontece anualmente no mês fevereiro. Pensá-las no sentido em que exatamente se denominam, ou seja, Escola de Samba, nos remete a outro lugar que as constituem como espaço de produção de conhecimento e promotor de aprendizagem, especialmente aqueles ligados a herança de matriz africana.
Podemos elencar inúmeras abordagens nas quais sambas-enredo e Escolas de Samba atuam como lugares de produção de conhecimento e valorização de aspectos da memória, da história e da cultura, em especial as de matriz africana representadas de forma particular nos desfiles. Os enredos apresentados em uma hora para quem assiste e em minutos para quem desfila são pensados, escolhidos e memorizados, por meio do samba, durante meses até a culminância do desfile. Sua produção envolve pesquisa no campo das artes e de outros saberes acadêmicos, a depender do enredo. É claro que importa muito o significado dos temas para as comunidades que os escolhem, mas sem pesquisa seria impossível colocar o carnaval na rua.
A história de Tereza de Benguela foi cantada pela GRES Unidos do Viradouro (RJ), no carnaval de 1994 e pela GRES Barroca da Zona Sul (SP) neste ano de 2020.
1994 – Tereza de Benguela – Uma Rainha Negra do Pantanal
Amor, amor, amor…
Sou a viola de cocho dolente
Vim da Pérsia, no Oriente
Para chegar ao Pantanal
Pela Mongólia eu passei
Atravessei a Europa medieval
Nos meus acordes vou contar
A saga de Tereza de Benguela
Uma rainha africana
Escravizada em Vila Bela
O ciclo do ouro iniciava
No cativeiro, sofrimento e agonia
A rebeldia, acendeu a chama da liberdade
No Quilombo, o sonho de felicidade
Ilê Ayê, Ara AyêIluAyê
Um grito forte ecoou (bis)
A esperança, no quariterê
O negro abraçou
No seio de Mato Grosso, a festança começava
Com o parlamento, a rainha negra governava
Índios, caboclos e mestiços, numa civilização
O sangue latino vem na miscigenação
A invasão gananciosa, um ideal aniquilava
A rainha enlouqueceu, foi sacrificada
Quando a maldição, a opressão exterminou
No infinito uma estrela cintilou
Vai clarear, oi vai clarear
Um Sol dourado de Quimera (bis)
A luz de Tereza não apagará
E a Viradouro brilhará na nova era
2020 – Benguela… a Barroca Clama a Ti, Tereza
No caminho do amanhã
Obatalá
É a luz que vem do céu
Clareia
Vem de Benguela o clamor de liberdade
Barroca pede tolerância e igualdade
Axé, Tereza
Divina alteza meu tambor foi te chamar
Sua luz nessa avenida
Incorpora a chama yabá
Da magia irmanada por odé
Não sucumbe a fé, traz a luta de Angola
E a corrente arrastou pro sofrimento
Um sentimento, valentia quilombola
Reluz o ouro que brota em seu chão
Desperta ambição, mas há de raiar o dia
Do Guaporé ser voz de preservação
Em plena floresta
Auê auê
Resistência na aldeia
Quariterê
Na mata, sou mestiço, guardião
O meu grito de guerra é por libertação
O nosso canto não é apenas um lamento
A coragem vem da alma de quem ergueu o parlamento
Do castigo na senzala à miséria da favela
O povo não se cala, oh Tereza de Benguela
Vem plantar a paz por essa terra
A emoção que se liberta
E a pele negra faz a gente refletir
Nossa força, nossa luta
De tantas Terezas por aí
O que significa falar de Tereza de Benguela através do samba? Qual a sua importância para as comunidades de escola de samba, normalmente compostas por pessoas negras e periféricas? Que elementos podem ser relacionados com o ensino de História?
Um exercício de análise é identificar as semelhanças e diferenças entre os dois sambas, pois se o enredo é o mesmo, as Escolas têm contextos distintos. Outro é verificar o que foi incorporado aos sambas-enredo da produção escrita e da memória sobre Benguela. Outro, ainda, é verificar como Benguela é retratada em cada um dos sambas, as ilações com as problemáticas e reivindicações da população negra brasileira em geral e das mulheres negras em particular, ou seja, trabalhar na sala de aula a história de resistência de Tereza de Benguela.
A escolha do tema, a forma de narrar e representar os personagens diz muito como a cultura popular se apropria da história e dialoga com o pensamento social e científico construído temporalmente. Nos sambas, Benguela é cantada como heroína, liderança negra cuja abordagem aponta o engajamento e o protagonismo das mulheres negras nas ações por liberdade. As agências escravas e as trajetórias de personagens são um caminho já consolidado nos estudos sobre escravidão no Brasil, no entanto, considerando que o ensino de história coloca em evidência demandas políticas e epistemológicas que interpelam a sociedade e a escola, é importante refletir quem e onde se ensina e aprende sobre estas histórias?
À luz dos debates sobre historiografia, ensino de história e história pública, é importante refletir sobre essas personagens e suas construções narrativas. Quais as linguagens e conhecimentos são acionados para falar de trajetórias que a priori são narradas como excepcionais? Como é possível perceber por meio de uma suposta “excepcionalidade” um sistema maior de estratégias, negociações, tensões e conflitos no bojo do sistema escravista e na luta por sua desestruturação no século XVIII? Como é possível pensar tudo isso percorrendo os vestígios deixados por personagens negras? Além das fontes escritas e tidas como oficiais, outras fontes também foram e são produzidas sobre Tereza de Benguela. Os dois carnavais aqui citados são um exemplo. O cordel de Jarid Arraes é outro que merece nossa atenção. Se percorrermos sites, blogs e redes sociais dos movimentos sociais negros e feministas negros brasileiros também encontraremos escritos e imagens sobre Tereza de Benguela.
A história pública tem sido um movimento intelectual e político de observação da realidade, mais do que isso, se configura como uma mediação e divulgação de conhecimentos, que muitas vezes estão fora da academia e que também ultrapassam o currículo escolar. Ela pode ser uma chave, que dialoga com o ensino e a pesquisa histórica, para pensar e dar visibilidade a tais trajetórias, que precisam permanecer numa agenda cotidiana de ensino e aprendizagem em história, assim como nos currículos e manuais didáticos.
Trabalhar a história de Teresa de Benguela por meio dos sambas-enredo, aqui citados, nos possibilita desenvolver diversos conteúdos relacionados com o tema da escravidão no Brasil. Por exemplo, os locais do comércio transatlântico de escravizados, como a capitania de Benguela; a dinâmica econômica e territorial no período colonial, afetada pela saga do ouro; o papel das religiosidades de matriz africana e a resistência dos africanos, seus descendentes e grupos de indígenas nos quilombos.
Dominada e protagonizada por homens, a história de uma mulher negra líder do quilombo Quariterê no período colonial, mas também morta pelo drama da destruição do quilombo remete aos dramas protagonizados por mulheres negras pela manutenção da família e da cultura. Por outro viés, conhecer essa história desnaturaliza a ideia dos espaços de poder dominados e chefiados por homens e isso dialoga com as pautas que reivindicam reconhecimento feminino e a busca por espaços de oportunidades.
Assim, tornar públicas essas histórias não é necessariamente contar uma “verdade” sobre esses sujeitos. Por conseguinte, permite-nos conhecer e entender diferentes versões valorizando e criando pertencimento naquilo que estava invisível. Vale salientar também que não se trata de “socorrer vítimas” por intelectuais bem intencionadas (ROVAI, 2018). Ao assumir o trabalho com tais trajetórias, historiadores/as e professores/as de história, também levam em consideração as múltiplas agendas dos movimentos sociais que interferem na produção das fontes, das narrativas e nas linguagens construídas.
Portanto, as questões do presente abrem caminhos e sinalizam a busca de vestígios que permitem interpretações e leituras do passado. As tantas Terezas por aí, como, ao final, o samba da Barroca da Zona Sul nos quer falar, sugere uma continuidade das experiências de luta das mulheres negras reconfiguradas pelo combate ao racismo e ao sexismo.
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ANDRADE, Fabrício Castilho Nunes. Samba de escola: o uso dos conceitos de memória e identidade para a educação das relações étnico-raciais. Dissertação de mestrado. UFRRJ, 2019.
ARRAES, Jarid.Tereza de Benguela. Texto impresso. S/a. Ver http://jaridarraes.com/tag/tereza-de-benguela
FARIAS Jr, Emmanuel de A. Negros do Guaporé: o sistema escravista e as territorialidades específicas, Ruris, volume 5,número 2, set/2011. Disponível em https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ruris/article/view/1467/984
MACHADO, Maria F. R. Quilombos, Cabixis e Caburés: índios e negros em Mato Grosso no século XVIII. Associação Brasileira de Antropologia, 25ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2006. Disponível em http://files.ufgd.edu.br/arquivos/arquivos/78/NEAB/GT48Fatima.pdf
ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Publicizar sem simplificar. O historiador como mediador ético. In: MENESES, Sônia e ALMEIDA, JunieleRabêlo (org.) História Pública em debate. Patrimônio, educação e mediações do passado. São Paulo: Letra e Voz, 2018.
SILVA, Ana Lucia da. Ensino de História da África e cultura afro-brasileira: Estudos Culturais e sambas-enredo. Curitiba: Appris, 2019.
TEIXEIRA, Raquel. Vila Bela da Santíssima Trindade começa as comemorações da Festa do Congo. Secretaria de Turismo, MT, 16/07/2010 disponível em http://www.cultura.mt.gov.br/-/vila-bela-da-santissima-trindade-comeca-as-comemoracoes-da-festa-do-congo