Sobre ser negra e lutar contra o silenciamento

Se você é uma mulher negra, não se cale. Nós não estamos ganhando nada com o nosso silêncio. As outras pessoas que aprendam a ouvir.

Por Julia Drummond, d0 Carta Capital 

Aos que não me conhecem, meu nome é Júlia, tenho 23 anos, sou mulher cis, hetero, negra e universitária. Me formei recentemente em Direito na USP e acabei de ser aprovada no mestrado em Direitos Humanos na mesma Universidade.

Parece muito prepotente da minha parte sair divulgando o meu currículo, mas  parei de falsa humildade porque a verdade é que as pessoas nunca esperam que eu ocupe este lugar, a menos que já me conheçam. Faço parte da exceção que confirma a regra, ou seja, sou aquele ponto preto num mar de gente branca, desde a minha Faculdade até o meu trabalho.

E sobre o que é este texto? É sobre silenciamento e lugar de fala. O que quero dizer com esses termos? Recentemente me vi em situações que mostraram o quanto o tempo todo as pessoas aparentemente mais legais, abertas e cults não fazem questão de me ouvir quando o que tenho pra falar questiona as posições que elas ocupam na sociedade. Eu não pretendo, com esse texto, fazer análises profundas sobre o que as leva a agir assim, mas apenas mostrar como isso acontece, para que, eventualmente, possamos nos unir para combater esse problema (não, não é simples, mas entender como acontece é um bom começo).

Não faz muito tempo, conversava com um rapaz branco e universitário e ele ficou impressionado com o fato de toda vez que falo de raça ou gênero cito fonte, ano, dados estatísticos e cruzo referências bibliográficas. Eu não tinha reparado que estava fazendo isso, mas percerbi que esse comportamento é consequência dos constantes questionamentos que sofro sobre os assuntos de que expresso.

Nós, mulheres negras, somos muito questionadas a todo momento, e a experiência me diz que, primeiramente, as pessoas – aqui me refiro às e aos militantes de esquerda – não pressupõem que a gente possua acúmulo acadêmico, o que é uma postura elitista, como se não bastasse ser também racista e sexista, porque exige um conhecimento restrito ao círculo delas/es que silencia a vivência de quem sofre a opressão e, muitas vezes, não ocupa este lugar no qual eu tenho o privilégio de estar.

Cito alguns exemplos de casos que representam esse silenciamento: ao conversar com um outro rapaz sobre atitudes machistas que adotou (e possivelmente continua adotando), fui questionada sobre cada item da minha fala, com argumentos que variavam desde “você precisa entender que teses sociológicas têm suas limitações quando aplicadas na vida privada” até “você está me tratando como um machista qualquer e invalidando a minha militância”.

Sobre o primeiro argumento, pedi fontes, afinal, se é pra jogar com academicismo, que seja com propriedade. Ele não as tinha. Sobre o segundo, perguntei por que se achava tão especial em relação aos outros homens. Por que ele é de esquerda? Não entendi.

A lição que se pode tirar desse exemplo pessoal, é que o rapaz me enalteceu como feminista e mulher negra enquanto eu não apontei o machismo dele. Mas, ao fazê-lo, de repente todo o meu acúmulo e, muito pior, a minha vivência foi ignorada, porque o conhecimento dele teoricamente valeria muito mais. Não, não vale. Ele não sabe o que é ser mulher negra, ser estereotipada, objetificada, preterida nas relações, tratada como segunda classe. Ponto final.

Outro exemplo, e este vale também para as feministas brancas, são as maneiras como o feminismo vem se propagando midiaticamente. Para além da discussão sobre as diversas vertentes feministas (a que eu procuro adotar é a do feminismo interseccional), o que está posto é que mulheres como a JoutJout, a Clarice Falcão e a Emma Watson vêm ganhando destaque. Não acho ruim que elas falem sobre o que falam, mas devemos nos perguntar por que a voz delas é ouvida e a nossa não.

Essa é outra forma de nos silenciar: apenas se importar com a opinião de quem já é privilegiada/o, seja essa pessoa uma mulher branca (sim, ela sofre machismo, mas ela vai continuar não sendo confundida com a vendedora da loja ou morrendo 10% menos por feminicídio, enquanto as mulheres negras morrem 54% mais) ou um homem branco.

Assim, deixando um pouco da minha reflexão: se você é uma mulher negra, não se cale. Nós não estamos ganhando nada com o nosso silêncio. Pode ser o que for, desde a sua opinião sobre qualquer coisa que não pareça relevante até a denúncia de um relacionamento abusivo por parte de alguém machista ou racista (ou os dois) escroto. Às demais pessoas: se querem tornar nossas vidas mais dignas, aprendam a ouvir. Como suspeito que isso não vai acontecer sem reclamações e resistências, não vamos e não devemos mais esperar outro punhado de séculos para que nos vejam como sujeitos de direitos que somos. Foi-se o tempo do medo e da espera de respeito que não veio: a gente vai se empoderando pra falar na marra.

Julia Drummond é advogada, mestranda em Direitos Humanos na USP, mulher negra e feminista.

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