Sobre trabalhos domésticos e a pequena comunidade “lar”

 

Jully Soares, 

Quando criança, aprendi com minha mãe e meu pai que as tarefas domésticas eram minha responsabilidade. Eu deveria limpar e arrumar a casa todos os dias, lavar o banheiro aos finais de semana, lavar a minha roupa… etc. Minha mãe tinha a tarefa de cozinhar, passar toda a roupa, ou seja fazer aquilo que eu não podia fazer devido à idade ou a falta de habilidade. Meu pai, é claro, não tinha função nenhuma a não ser vigiar a qualidade do meu trabalho e me obrigar a fazer tudo a seu tempo e a seu modo. Ele era o homem da casa. Isso explicava tudo.

Bem, na verdade, não explicava. Mas já nessa época percebia que a posição do meu pai se devia ao fato de ele ser homem – e que, não só na minha casa, como em todas as outras, os homens tinham privilégios inquestionáveis só pelo fato de serem homens. Eu os questionava, a eles, os adultos. Mas na ausência de respostas ou atitudes satisfatórias por parte de um e de outra, uma outra pergunta me inquietava ainda mais: sendo, então, a questão ligada exclusivamente às noções de homem e mulher, por que a maior parte do trabalho doméstico ficava comigo?

Sempre inquieta, sempre insatisfeita, sempre questionadora, fui desenvolvendo teorias para esse arranjo familiar e doméstico. Da passagem de uma teoria a outra, cheguei à explicação de que eu precisava fazer a maior parte daquele trabalho porque eu era a única da casa que não trabalhava. Ouvindo algumas vezes, em outros espaços, por parte das e dos adultos, que as crianças tinham uma única obrigação, a de estudar, eu desenvolvi a teoria de que, na pequena comunidade na qual eu vivia, a nossa casa, nossas únicas responsabilidades eram estudar e fazer o trabalho doméstico que ninguém queria fazer. Estudando estaríamos cuidando do nosso futuro e cuidando da casa estaríamos cooperando com a comunidade conforme nossa capacidade. Ótima explicação! Porque assim me aquietei; até passei a gostar daquilo que ninguém gostava de fazer, já que entendi que cada um/a deveria cooperar com a comunidade em que vivia. E aquela era a melhor maneira de eu ajudar.

O problema de todo esse arranjo mental era que, ao entender que as pessoas que trabalhavam fora, que colocavam dinheiro dentro de casa, poderiam se abster mais ou menos das tarefas domésticas (sem nenhuma vantagem para o meu pai pelo fato de ele ser homem, obviamente), eu admitia que o trabalho fora, que o dinheiro valiam mais que todo o resto. Com o passar do tempo, e o desenrolar da minha adolescência, daí foi-se desenvolvendo certa dissonância. Porque eu não achava que o fato de meu pai ser homem lhe dava o direito de se acomodar em cima do trabalho das ou dos demais; da mesma forma que não concordava com a ideia de que, só pelo fato de trabalhar fora, de contribuir financeiramente com a sobrevivência da comunidade, uma pessoa poderia se abster completamente de todas as demandas domésticas, mesmo porque todo e toda integrante dessa comunidade deveria desfrutar dela da mesma maneira, gerando inclusive novas demandas para o trabalho.

Os questionamentos poderiam ter chegado a um limite nesse ponto se eu não tivesse presenciado, em outra família, uma cena que ressignificou toda a minha história. Era uma família formada por mãe, pai, filho e filha. Numa dessas pequenas confraternizações de final de semana, me contaram sobre o revezamento que faziam diante da tarefa de limpar e arrumar a cozinha depois das principais refeições. Num dia era o pai, noutro dia a mãe, noutro dia o filho, noutro dia a filha. Assim, sem nenhuma distinção de sexo, de gênero, de disposição, de habilidade, de salário, nada. Igualzinho para todo mundo. Inclusive para o filho – coincidentemente ou não, menino e mais preguiçoso.

Eu não sabia se essa família, essa comunidade, se organizava assim sempre – para todas as tarefas domésticas ou para o conjunto de tarefas domésticas. Imagino, mesmo, que não. Mas fiquei encantada com aquele novo modelo de sociedade, de comunidade, representado por aquela simples tarefa de arrumar a cozinha depois das grandes refeições. Porque é uma tarefa da qual a maioria das pessoas quer se esquivar. Mas ali ninguém se esquivava porque ninguém era a única ou o único responsável; ninguém estava mais indicada ou mais indicado para fazer o que ninguém queria fazer. Ali todas e todos tinham que fazer. O que, na minha leitura, trazia de maneira bastante sutil a noção de que ali todas e todos eram iguais.

A divisão do trabalho doméstico é um ótimo costume para mostrar o quanto as pessoas são iguais numa comunidade ou numa sociedade. Se a comunidade (a casa, o lar) é de todos e todas; se todos e todas tem aquele espaço como um espaço de descanso e de lazer por que então o mesmo espaço não pode representar trabalho para todas e todos igualmente? Por que o sexo e ou o gênero deveriam condenar uma pessoa às delicias ou aos dissabores da vida? E por que o dinheiro, o provento, precisa ter um maior peso? (Quero dizer, quando ele não cruza com a questão de gênero – porque minha mãe sempre foi mais bem remunerada do que o meu pai e isso, pelo menos na cabeça dele, nunca quis dizer que as tarefas menos valorizadas, as domésticas, deveriam então ser de sua responsabilidade.)

Não acredito que na comunidade “casa”, “lar”, as regras muito fixas funcionem bem. Afinal, a rotina de um/a e de outro/a integrante muda – como mudam as crianças na medida em que vão crescendo, como mudam as e os adultos quando trocam de trabalho, quando param ou voltam a estudar; como mudam as pessoas, no geral, quando passam por determinadas crises que a vida impõe. Mas acredito que só o ato de valorizar mais este ou aquele sujeito pelo que tem entre as pernas, pelo salário que recebe no final do mês, pelo seu tamanho ou por qualquer outra forma injusta de supervalorização, por si só já revela uma grande dificuldade de pensar em todas e todos como iguais, apesar de diferentes.

Que possamos encontrar maneiras de valorizar toda forma de trabalho, todo sujeito, igualmente, tanto em casa quanto na rua. Porque trabalhar fora todo dia não é menos chato e estressante do que cuidar da casa todo santo dia – nem mais valioso.

—–

Jully Soares é jovem pensadora e militante feminista, negra e bissexual.

 

Fonte: Blogueiras Feministas

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