Sobre violência política de raça e gênero e novas ameaças a mulheres negras

Enviado por / FonteECOA, por Anielle Franco

Desde o fim das eleições municipais de 2020, quando o Instituto Marielle Franco direcionou seus esforços para compreender melhor como operam os mecanismos de violência política contra mulheres negras no Brasil, diversos episódios envolvendo retaliações, xingamentos e graves ameaças à vida de parlamentares negras ocorreram em todas as regiões do país.

Por ser uma instituição que surge a partir de um episódio bárbaro de violência política, uma das frentes de atuação da nossa organização vem sendo denunciar os casos de violência contra mulheres negras e prestar apoio às mesmas no intuito de garantir sua segurança e o pleno exercício de seus direitos políticos e das suas apoiadoras e apoiadores.

Nas últimas semanas, dois casos específicos envolvendo mulheres negras com trajetórias de vida, estados, partidos políticos e cargos diferentes chamaram atenção na imprensa nacional. O primeiro caso, a primeira prefeita negra do município de Cachoeira, no interior da Bahia, Eliana Gonzaga, do partido Republicanos, e o outro caso ,da primeira mulher trans vereadora do município de Niterói, Benny Briolly, do Partido Socialismo e Liberdade.

Benny Briolly e Eliana Gonzaga
Imagem: Divulgação/Instituto Marielle Franco.

O Instituto Marielle Franco e outras organizações parceiras vem atuando em ambos os casos, para cobrar a responsabilidade do Estado e a investigação das ameaças para ambas as políticas e hoje, quero utilizar o espaço da minha coluna para tratar desse tema e do terror que essas mulheres vem vivenciando nos últimos meses. que parece não deixar de perseguir as mulheres negras em nosso país.

Eliana Gonzaga de Jesus é uma mulher negra de 52 anos que ficou conhecida pela sua trajetória na luta sindicalista e no ativismo pelos direitos da terra e direitos básicos para a população de Cachoeira. Eliana era líder sindical e líder sindical e foi vereadora na cidade por dois mandatos (2009/2016). Nas eleições de 2020, Eliana foi eleita prefeita com 55,94% dos votos, derrotando o candidato Fernando Pereira, conhecido como Tato, do PSD, que a família há anos comandava a cidade. Logo após as eleições, a prefeita e seus apoiadores passaram a sofrer retaliações e ameaças por parte de apoiadores do oponente derrotado. A partir dali, a cidade de Cachoeira vivenciou um verdadeiro cenário de terror, com ameaças e pedidos de renúncia para Eliana.

A primeira vítima fatal dessa história foi um militante, que fez campanha ativa para Eliana e que foi morto apenas 2 dias após a vitória de Eliana, em 17 de novembro de 2020. O crime chocou a cidade e gerou uma atmosfera de medo e apreensão. Ivan foi morto com 19 tiros, a maioria na face e acredita-se que o crime tenha tido motivações políticas. Após esse assassinato, diversos apoiadores da prefeita recém-eleita precisaram deixar o município, por temerem por sua vida e enquanto as investigações sobre o assassinato de Ivan corriam. Entre eles estavam Georlando Silva, que era coordenador de obras da prefeitura e que somente retornou na cidade, para a posse da prefeita Eliana. Georlando foi a segunda vítima, no dia 7 de março de 2021, próximo das comemorações do Dia Internacional da Mulher, Georlando foi executado em frente a delegacia da cidade com 10 tiros no rosto – o número de tiros, não foi uma coincidência – o número 10 era também o número da sigla pela qual Eliana se elegeu.

Após esses episódios, a prefeita ainda recebeu ligações onde ouvia barulhos de tiros do outro lado da linha e foi seguida por homens em uma moto, que fugiram após uma intervenção da polícia local. Eliana, como prefeita, teve acesso a todas as instâncias de poder, recebendo a solidariedade e manifestações de apoio de movimentos sociais, em especial o movimento negro e feminista, até a Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública da Assembleia Legislativa da Bahia, a Secretaria de Segurança Pública, o Comando Geral da Polícia Militar do Estado da Bahia e o Delegado Geral da Polícia Civil da Bahia. A Secretaria da Segurança Pública da Bahia informou que, ainda no início do ano, reforçou o patrulhamento com equipes da Polícia Militar na cidade. Mesmo com todo apoio, a prefeita se emociona ao falar da morte dos dois militantes e das pessoas que ainda estão fora da cidade por medo. Até agora, os mandantes do crime não foram identificados.

Benny Briolly, mulher negra trans/travesti, favelada, de religião de matriz afro e defensora de direitos humanos, cria das favelas de Niterói, cresceu nos morros do Fonseca, morou em vários outros da cidade. Concorreu no pleito municipal de Niterói ao cargo de vereadora em 2020, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), sendo eleita com mais de 4 mil votos, a primeira vereadora trans eleita para a Câmara Municipal de Niterói na história da cidade.

Ainda na faculdade, liderou o movimento “Educação não é mercadoria”, processo de reivindicação dos estudantes contra o aumento das mensalidades. E como estagiária de comunicação no Sindicato dos Jornalistas adentrou na luta pela democratização da comunicação. Em 2016, construiu uma campanha ousada por “Uma Niterói Negra, Feminista, LGBT e Popular”, que culminou com a eleição de Talíria Petrone como a vereadora mais votada da cidade de Niterói e a primeira vereadora negra da história. Naquele momento, Benny tornou-se então, a primeira assessora trans da Câmara de Vereadores de Niterói. No mandato, Taliria presidia a Comissão de Direitos Humanos, da Criança e do Adolescente e Benny tinha uma importância central no trabalho da comissão, atendendo de forma muito qualificada diversas situações de violação de Direitos Humanos.

Como primeira mulher transexual assessora parlamentar, ainda em 2016 passou a ser vítima de ameaças e agressões. Inicialmente teve seu nome e imagem circulando em grupos de ódio nas redes sociais. Comentários do tipo “merece morrer”, “traveco maldito”, “eu vou te espancar”, “se eu ver essa porra na rua vou bater até virar homem” eram constantes nas redes sociais. Já em 2018 durante o ato “Ele Não”, manifestação pública organizada por mulheres e movimentos sociais feministas contrária à candidatura do atual presidente da república, policiais que tocavam no carro o jingle do atual presidente Jair Bolsonaro, fizeram uma abordagem sem motivação e tentaram conduzir Benny a delegacia sob argumento da mesma não estar portando sua identidade.

Em dezembro de 2020, após já ter sido eleita, durante um ato da extrema direita liderado pelo vereador da oposição, realizado na frente da Câmara dos Vereadores de Niterói, do alto do carro de som, o referido vereador incitou seus eleitores a atacar Benny. Sob xingamentos e ameaças, a parlamentar eleita precisou ser retirada da Câmara escoltada pela Guarda Municipal, que foi acionada por outros vereadores para assegurar a integridade física da vereadora.

Após tomar posse como vereadora em 2021, os ataques continuaram e dessa vez dentro da própria Câmara e em espaços públicos. O desrespeito ao nome social e o pronome feminino, a transfobia, ataques ao corpo e a identidade de Benny se tornaram constantes, com as ameaças aumentando cada dia mais e a sensação de insegurança para ela e toda sua equipe se potencializando. Chegando ao ápice de, na última semana, ter sido necessária sua saída do país por tempo indeterminado, ou até que o Estado consiga garantir as condições de segurança e proteção necessárias para que Benny exerça seus direitos políticos de forma segura.

A situação vivenciada tanto pela vereadora Benny, quanto pela prefeita Eliana demonstram o quanto ainda precisamos avançar no enfrentamento a violência política de raça e gênero no Brasil, e o quanto esses ataques fragilizam nossa democracia. A saída de uma vereadora de seu país, ou a mudança da rotina de uma prefeita, democraticamente eleitas, em decorrência de ameaças é algo inadmissível. A violência política busca minar o exercício dos direitos políticos de grupos sub-representados, como de mulheres negras e pessoas LGBTQIA+.

Ainda que o caminho a ser percorrido por uma maior representatividade de mulheres negras em espaços de poder seja longo, sabemos a importância de termos estas mulheres eleitas e exercendo seus cargos. A política exercida por esses corpos é para todas, todos e todes e se destina a combater os mais profundos problemas sociais de nosso país. A luta pela proteção, vida e o direito político das mulheres negras eleitas é uma luta por uma democracia no Brasil sem racismo, machismo e transfobia. Não seremos interrompidas.

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