Carregamos nos braços nossa herança, nossas histórias e através dos nossos passos tentamos criar novos rumos. Passos marcantes, passos cansados, sem tempo de recuperar o fôlego para o próximo passo. Passos construídos pela necessidade e coragem. E nestes passos seguem, mais uma Maria. Das Marias madrugadeiras, que percorrem quilômetros todos os dias e buscam o sustento de suas famílias nas ruas, no lixo e nas sobras.
Luiz Roberto Lima
Maria do Carmo é mais uma Maria, lhe sobra coragem, a beleza retinta da pele negra e a tenacidade de uma lutadora. De palavras curtas e questionamentos longos, ela revela um ar de desconfiança sobre qualquer gesto de bondade.
Em pleno sábado, pelas ruas de Botafogo, Maria do Carmo carrega algo além de sua herança. Em seu carrinho transporta uma geladeira branca duplex de 67 quilos – mais que seu próprio peso -, da marca Cônsul, branca de 445 litros. O refrigerador, abandonado na rua, mantém um certo aspecto dos seus tempos de glória, possivelmente, em seu interior foi guardado algumas dezenas de peças de filé mignon, champanhes que regaram festas de aniversário e de finais de ano. De tanto abrir e fechar, a porta superior despencou. Agora, num trajeto quase fúnebre pelas calçadas estreitas e incertas do bairro, segue rumo ao ferro velho sem nenhuma elegância, na esperança de cumprir sua última função, a de alimentar a família de Maria.
Da rua Assunção, em Botafogo, onde o objeto foi encontrado, até a loja de sucatas na Paissandu, no Flamengo, são aproximadamente 3 quilômetros de distância, indo pela praia mas sem tempo de apreciar a paisagem. Entre as calçadas inconstantes e o transito do meio dia desordenado pela fome. A saída da vendedora é ir pela contramão. E é pela contramão que Maria segue sua vida, desviando-se da pobreza, do desemprego e dos preconceitos. Ela não fala de sua vida pessoal, de amores e de sua casa. A rua é ríspida, e para sobrevier dela é imperativo um pouco de austeridade, mas nada arranca a graça do seu sorriso e de sua vaidade. O percurso é de mais de duas horas e debaixo de um sol de 40 graus, sem trégua.
O semáforo abre, mas o olhar de quem passa por ela permanece rúbeo pela incapacidade de socorre-la. Maria atravessa a rua sozinha. Além do peso da geladeira, carrega sobre os ombros o peso da desigualdade, do preconceito e da indiferença das pessoas. A invisibilidade a incomoda, mas ela não se deixa abater. Moradora de Madureira, ela demonstra muito orgulho da filha, que cursa jornalismo em uma universidade da qual não sabe o nome, mas tão pouco isto lhe importa, seus olhos brilham ao falar do feito da filha.
O caminho é penoso, a cada passo o refrigerador parece pesar alguns quilos a mais, cada desvio é extenuante como nos percalços da vida. A cada desnível do passeio é necessário regressar um pouco no sol incandescente. A mulher tenta manter o ritmo – as Marias não são de desistir, e a do Carmo, muito menos. “O equilíbrio no eixo é o que deixa mais leve” – Ela filosofa enquanto mostra como se deve contrabalançar, o peso, – da geladeira e da vida -, para que as tornem mais suave.
Os braços tremem, as mãos aparentam vacilar no guidão do carrinho, torrencialmente o suor escorre pelo rosto e as câimbras tentam escalar as pernas. Já passam das treze horas e Maria segue de estomago vazio.
Como num gesto de respeito, alguns a cumprimentam com os olhos, próximo da estação do metrô do Flamengo. O fio da geladeira cai e um casal volta e ajuda Maria a prendê-lo de volta no elástico. O caminho parece nunca ter fim. O “logo ali” de Maria é como o dos mineiros, cada vez vai ficando mais distante, talvez um pouco, por causa da exaustão que se apodera do corpo da mulher.
Ao chegar na rua do ferro velho, a vendedora – assim como gosta de ser reconhecida profissionalmente -, descobre que chegou tarde demais e o estabelecimento havia fechado ao meio dia. O rapaz da oficina mecânica, vizinha ao ferro velho, não foi capaz de servir um copo de água à Maria, mas lhe indicou um outro local, há algumas quadras dali, onde talvez ela conseguisse finalmente barganhar alguns trocados.
Enfim a geladeira cumpre sua trajetória. Maria do Carmo conseguiu apenas seis reais por ela. Todo seu esforço não valeu um quilo de carne. Entretanto, sorrindo ela dobra a esquina com uma força inquebrantável, e segue resistente, com passos de esperança; os passos das Marias; das Marias lutadoras de todos os dias pelas ruas do Brasil, para romper as desigualdades e poder sustentar seus filhos dignamente.
Fonte: Brasil Post