Sobrevivendo ao estupro

Eu gostava de torturar minha mãe com perguntas do tipo “você preferiria isso ou aquilo?”

Por Ella Mathews Do Brasil Post 

Você preferiria ser invisível ou conseguir conversar com os animais? Você preferiria ter três metros de altura ou um metro e meio de largura? As possibilidades são infinitas. Mas você tem de escolher uma resposta. Não vale roubar.

Na escola, uma colega me perguntou uma vez: “Você preferiria ser estuprada ou assassinada?” Lembro de pensar durante um tempo: nenhuma das alternativas parece legal. Mas você tem de escolher uma resposta.

Escolhi ser assassinada.

O irônico é que fui estuprada.

Aconteceu numa época em que estava profundamente infeliz. Um namorado que achei que nunca ia me abandonar tinha terminado comigo. Estávamos indo e vindo havia anos, mas até então eu é que tinha sido a responsável pelas separações.

Um tsunami de dores reprimidas se abateu sobre mim. Meu pai tinha saído de casa de repente alguns anos antes. Ele dizia que nunca quisera ter filhos. Esse novo rompimento confirmou meus medos mais profundos: não merecia ser amada.

Para piorar as coisas, odiava meu trabalho: era chato e não me satisfazia. E eu nem precisava estar muito bem para fazer o que esperavam de mim.

O resultado é que comecei a sair muito. Achei que, se fingisse com força que estava tudo bem, as coisas efetivamente pudessem ficar bem.

Dancei, bebi, dei risada, flertei. Quando realmente queria me sentir desejada, transava com alguém que não significasse nada para mim, e para quem eu também não significasse nada.

Tinha um cara, amigo de um amigo – vamos chamá-lo de Dan. Ele não parava de dar em cima de mim desde que tínhamos nos conhecido.

Você conhece o tipo: chegava encostando e fazendo comentários de mau gosto. Eu não gostava dele e o evitava. Mas ele estava sempre com a turma. E eu não ia deixá-lo estragar esse meu momento de fuga de mim mesma.

Naquela noite saímos em um grupo grande; Dan também estava junto. Começamos num pub, fomos para um bar e depois para um clube. Acabamos na casa de alguém. Estava tarde, eu estava cansada e decidi dormir lá mesmo.

Deitei num quarto de visitas, vestida e sozinha. Acordei com minha calcinha no chão e Dan na cama.

Fiquei tão horrorizada, com tanto nojo, que nem o confrontei. Me vesti e fui embora.

No fim do dia, não conseguia mais fingir que nada tinha acontecido. Memórias tênues tinham perfurado minha armadura de negação.

Ele entrou no quarto no meio da noite. Ele tirou minha roupa. Ele me penetrou. Tentei impedi-lo, mas estava meio dormindo, confusa, ainda sob os efeitos do álcool.

Fiquei com medo de ir à polícia. E se botassem a culpa em mim? Já era ruim o suficiente a culpa que eu mesmo estava sentido.

Fiquei obcecada com a ideia de não deixar o estupro me mudar.

Mas, quanto mais lutava para ser eu mesma, mais difícil era. Os pesadelos eram a pior parte: acordava toda noite suando e chorando. Um dia encontrei Dan. Comecei a chorar na hora.

No fim das contas me indicaram uma psicóloga incrível, especializada em traumas sexuais. Ela me ajudou muito, mas levou muito tempo e muito esforço. Coloquei minha vida no lugar. Achei um emprego legal.

Abandonei os amigos que não eram amigos e me reaproximei dos de verdade. Comecei a me cuidar direito. Me apaixonei por alguém que também me ama.

Aprendi a curtir o sexo de novo. A recuperação não é fácil. Ainda não estou 100%, mas me sinto muito, muito melhor. Minha vida é boa.

De vez em quando ainda tenho pesadelos.

Ainda odeio Dan, mas não me odeio mais.

Se alguém me perguntasse agora: “Você preferiria ser estuprada ou assassinada?”, a resposta seria simples.

“Sou eternamente grata a meu marido, minha família, meus amigos próximos e à incrível psicóloga pelo apoio que recebi. Também gostaria de agradecer a duas mulheres incríveis que me ajudaram a superar o medo de contar essa história: Kate, do Pouting in Heels, e Tamar, do 5 Percent Club.”

 

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