STF distorce o Estado laico ao liberar “catequese” em sala de aula

Um padre alemão foi processado por recriar cenas bíblicas usando bonecos de Playmobil

Por Eloísa Machado*, especial para o blog do Sakamoto

Foto: Flávio Florido

A Constituição Federal de 1988 prevê ensino religioso, isso é verdade.

Está lá, no artigo 210 da Constituição: “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. Isso é inegável.

Também é inegável que o Brasil é uma República laica. Para ficar no básico: um Estado que não tem religião, que não subsidia religião, que não constrange religião, que não diz qual está certa e qual está errada. Isso é verdade.

Mas se, como já dito, a Constituição de 1988 prevê ensino religioso, então, como faz? O Estado é laico ou não é?

O certo mesmo era mudar a Constituição, retirar a previsão de ensino religioso nas escolas públicas.

Simples assim: escrevam uma proposta de emenda constitucional, coloquem em pauta, avancem a madrugada discutindo, acertando um apoio aqui, negociando uma emenda ali, e pimba! Foi-se o ensino religioso.

Mas parece que esse tipo de reforma ocorre só para tirar direitos, como a Reforma Trabalhista, ou a PEC do Teto dos Gastos. Ou para dar direitos aos parlamentares, como o Fundo Partidário.

Mas se não mudou via emenda constitucional, a gente poderia pedir para o Supremo Tribunal Federal interpretar isso aí direito, tentar conciliar um Estado laico com ensino religioso nas escolas? Veja bem, um meio termo!

E assim foi feito. A ação julgada hoje pelo plenário do STF pedia que ensino religioso fosse interpretado como um ensino não confessional, ou seja, mais geral, dissociado de uma doutrina religiosa, das autoridades religiosas. Um tipo geral de histórias das religiões.

Muita gente tentou puxar a sardinha para o seu lado. Ah, desculpe, esqueci de dizer isso. Tem muita sardinha, que dizer, muito dinheiro envolvido para financiar esse ensino. Dinheiro público. As grandes organizações religiosas foram logo reclamando: como assim alguém de fora da religião vai falar sobre a religião tendo tanta gente da religião que vai poder falar melhor sobre a religião?

Enquanto isso, um outro pessoal que conhece a realidade de escola pública – e é escaldado com a falta de infraestrutura, de remuneração decente, de tempo para qualificação – defendeu uma lista do que o ensino religioso não deveria ter para não virar bagunça.

Não poderia ser obrigatório, ter matrícula automática, ter como professor uma autoridade religiosa. Não pode contabilizar como a carga horária mínima. Não pode orar. Não pode financiar catequisação em uma doutrina religiosa com recurso público.

Quem sabe, assim, com esses cuidados, seria possível um ensino religioso capaz de se conciliar com um Estado laico.

Contudo, o Supremo não fez isso, não. O que o Supremo fez foi exatamente bagunçar tudo, abrindo as portas das escolas públicas para o ensino religioso confessional, ou seja, aquele que vai ensinar uma determinada religião como explicadora do mundo, como verdade absoluta.

Mas vai ter de todas as religiões? Isso a gente não sabe ainda. O STF não explicou. Mas e aí? Quem paga? Até agora a gente também não sabe. O STF não explicou. Mas sabe como é, sardinha pouca, meu pirão primeiro… Ou será que tem sardinha nesse angu?

Não é só sobre dinheiro, claro. Essa discussão é sobre tolerância, sobre pleno desenvolvimento, sobre liberdade das futuras gerações. Estudos mostram que o ensino religioso em escolas públicas abre espaço para uma batalha entre religiões, uma disputa por recursos, fiéis e verdades, aumentando a intolerância.

É, pois então. Mas o STF acha que tudo bem.

(*) Eloísa Machado é professora da FGV Direito SP, especialista em direitos humanos e coordenadora do Centro de Pesquisa Supremo em Pauta

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